O recente anúncio, feito pelo primeiro-ministro, em Vila Real, de que o Governo vai devolver às Santas Casas os hospitais que lhes pertencem, mas de cuja gestão foram arredadas pela nacionalização decretada em 1975, suscitou na generalidade das 27 Misericórdias abrangidas pela medida, um sentimento de grande emoção e alegria: finalmente, um órgão soberano do Estado afirmou a vontade de lhes fazer justiça, restituindo-lhes o que de direito lhes pertence!
Mas, se é óbvio que esta decisão agradou às Misericórdias, na medida em que lhes reconhece a liberdade e autonomia para gerir uma actividade que faz parte do seu código genético, há mais de quinhentos anos, e as considera um parceiro complementar do Estado, é também natural que o comum dos cidadãos, sobretudo aqueles que nasceram depois da revolução abrilista, se interroguem sobre quais as vantagens que as Misericórdias oferecem face ao Estado na prestação de cuidados de saúde. É essa a questão sobre que me proponho opinar no presente artigo.
A primeira razão que, desde logo, me leva a afirmar o primado das Misericórdias sobre o Estado na área da saúde prende-se com o facto de aquelas assentarem a sua acção em dois pilares fundamentais: voluntariado e caridade.
A dimensão ética do voluntariado, traduzido em obras de misericórdia materiais e espirituais, faz toda a diferença no mundo da saúde como, aliás, na área social: enquanto o Estado presta cuidados de saúde por imposição constitucional e o sector privado os presta para obter remuneração do capital investido, as Santas Casas exercem as suas funções segundo o espírito cristão da caridade. Gratuitamente, milhares de voluntários e beneméritos oferecem o seu trabalho, o seu dinheiro e a sua tranquilidade, sem outro interesse que não seja o do amor pelo próximo por amor de Deus. E é justamente este sentimento que explica que as Misericórdias sempre tenham dispensado uma atenção e um carinho muito especiais pelos seus doentes e idosos, tratando-os com grande afecto e ternura e demonstrando sempre uma enorme preocupação para com os mais débeis e excluídos.
A humanização é, pois, a marca de água destas multisseculares instituições. E essa marca faz toda a diferença, pois que a solidariedade com o próximo não deve basear-se exclusivamente na ciência e na tecnologia ou sequer num mero propósito filantrópico. A eclesialidade e a espiritualidade que estão na base do humanismo cristão constituem o maior fundamento doutrinal da humanização. Cuidar dos enfermos com carinho, ternura e compreensão representa, afinal, o evangelho em acção.
A propósito dos cuidados paliativos, Cicely Saunders escreveu: “Eles obrigam a tudo o que falta fazer quando não há mais nada a fazer”.
Ora, a humanização que as Misericórdias adoptam como norma de acção consiste precisamente nisso que falta fazer quando a ciência e a tecnologia nada mais têm para fazer: “segurar uma mão, ouvir uma história, abrir um sorriso”.
A segunda vantagem que elas oferecem tem por base a sua longa e secular experiência hospitalar em Portugal e no mundo lusófono. Efectivamente, apesar de a vocação das primeiras Misericórdias não abranger a acção hospitalar - com excepção das do Porto, Viana do Castelo, Barcelos e Praia da Vitória que, há mais de 500 anos, nasceram umbilicalmente ligadas a hospitais dos respectivos municípios -, a verdade é que, a partir do século XVII, quer as Misericórdias até então existentes quer as que posteriormente se foram criando, passaram a tomar a seu cargo o governo dos hospitais, a contento geral, retirando aos municípios as dificuldades e canseiras da gestão hospitalar para a qual, é bom que se diga, não estavam preparados.
Por isso, há vários séculos que as Misericórdias se converteram em matriz essencial ou paradigma dominante das instituições assistenciais e passaram a deter quase o monopólio da rede hospitalar do país. E esta situação perdurou até 1975.
Tal vivência conferiu-lhes um capital de experiência inigualável que se traduziu num sistema peculiar de práticas, organização, gestão e qualificações profissionais que se foram uniformizando, segundo um tipo bem padronizado. Ora é esse capital que pode e deve ser posto à disposição das populações que, durante séculos, por elas foram servidas quase em regime de exclusividade.
A terceira circunstância que milita em abono dos cuidados de saúde prestados pelas Santas Casas reside no facto de nestas, geralmente, se praticarem uma melhor gestão e serviços mais rápidos, fazendo mais com menos e acelerando a resposta aos doentes em termos de consultas de especialidade e cirurgias. E tudo isto com um quadro de pessoal polivalente, mais pequeno e mais flexível, que responde às necessidades de uma administração com menos burocracia, não sujeita às regras estatais (em termos de admissões, manutenção e aquisições), com menos cargos directivos ao nível da administração e com maior racionalidade e rigor nos consumos e contratações.
Em suma, na saúde, tal como no sector social, as Santas Casas são capazes de conciliar os melhores princípios do sector público com as boas práticas dos privados, fazendo o equilíbrio entre o despesismo daquele e o móbil do lucro que anima estes últimos. E ainda que não tenhamos nenhum preconceito ideológico contra o lucro legítimo, afigurasse-nos que a fragilidade dos doentes não consente que a saúde possa ser encarada, predominantemente, na perspectiva do “negócio”.
Não admira, por isso, que, em duas avaliações feitas em 2010 pelas conceituadas Joint Comission Internacional e Siemens, os hospitais das Misericórdias figurem no topo do rating português. De resto, como prova do que acaba de dizer-se, podem apontar-se, no distrito de Braga, como casos de sucesso e excelência, os Hospitais das Misericórdias de Vila Verde, Póvoa de Lanhoso e Riba d’Ave. Reside, pois, numa melhor gestão a chave que permite explicar a razão por que as Misericórdias conseguem praticar preços por actos médicos e cirúrgicos 30% abaixo dos cobrados nos hospitais públicos, nos privados ou nos de parcerias público-privadas.
Finalmente, uma quarta razão, esta de índole financeira, permite uma maior apreciação dos hospitais das Misericórdias em relação aos hospitais públicos e privados: o modelo de comparticipações familiares adoptado por aqueles – o porcionismo.
Tal modelo, testado e afinado ao longo de séculos, fundamentase no princípio de que a gratuitidade e a universalidade devem ser reservados para as classes mais pobres e desfavorecidas da sociedade, já que, aos demais cidadãos, os direitos sociais, entre os quais o direito à saúde, deverão ser assegurados na justa medida dos seus recursos. E a quem objectar que, desse modo, os ricos, por já pagarem impostos mais altos, vão pagar duplamente os serviços de saúde, responda-se que esse é o “preço” que terão de pagar para viverem uma sociedade decente e verdadeiramente social. É uma questão de ética e de justiça social.
Eis, em suma, prezados leitores, as razões por que entendo que as Misericórdias têm de ser complementares do Estado e servir-lhe de exemplo na prestação de cuidados de saúde e na reforma do Estado Providência. Sendo, antes de mais, uma questão de justiça, a devolução às Misericórdias da gestão e administração dos seus hospitais e a sua ligação ao SNS podem também representar uma solução para salvar este serviço e topar uma saída para a grave crise que Portugal atravessa.
António Brochado Pedras
Provedor da Santa Casa de Misericórdia de Barcelos
Presidente do Secretariado Regional de Braga da União das Misericórdias Portuguesas