D. Afonso II figura no rol dos monarcas mais desprezados da nossa História. Se faltassem evidências, bastaria reparar no cognome com que ficou conhecido. Como era timbre, este epíteto resumia a obra alcançada pelos reis durante seu reinado. D. Afonso Henriques foi o "Conquistador", D. Sancho I, o"Povoador" e a D. Afonso II, quer era, respectivamente, neto e filho dos precedentes, não lhe arranjaram melhor do que o"Gordo", como se não houvesse mais nada a destacar durante o seu (curto) reinado. Aliás, o cognome é bastante posterior, porque logo após a sua morte ele era conhecido como "aquele que foi gafo", ou seja era leproso. Esta indiferença a que foi votado o nosso terceiro rei é de uma injustiça tremenda. D. Afonso II teve uma acção decisiva na construção do Estado português, cuja obra só pode ser comparada, entre os reis da primeira dinastia, à de D. Dinis, tendo em certos aspectos desbravado caminho para afirmação do poder real face à constante ameaça do poder senhorial, numa guerra sem quartel em que se digladiava o interesse comum contra o poder dos senhores, largamente prodigalizados nos reinados antecedentes.
Mas porque motivo foi tão depreciado e ignorado até mesmo pelos historiadores? O motivo só pode ser um: D. Afonso II nunca foi um cavaleiro, até porque a doença e a sua compleição física nunca o permitiam. Mas aquilo que podia ser um óbice ao desempenho da função real, acabou por ser uma grande vantagem, pois foi o monarca que o reino precisava naquela altura da sua história.
No reinado de D. Afonso Henriques a divisa era conquistar, conquistar, conquistar. D. Sancho já se preocupou em manter e alargar o território, facilitando a ocupação efectiva, objectivo não conseguido, pois a investida do "Almansor", em 1191, colocou a fronteira da cristandade novamente em Lisboa. O problema da política dos dois primeiros monarcas foi o preço a pagar, com as largas benesses e privilégios para os cavaleiros que os ajudavam nestas batalhas e para o clero, que beneficiava de terras para instalar os simbolos da cristandade (igrejas e mosteiros).
D. Afonso II teve ainda a infelicidade de seu pai ter sido muito generoso no seu testamento. D. Sancho pensava que seria essa a melhor forma de evitar conflitos! Enganou-se completamente. D. Afonso II só não poderia dizer a mesma frase que D. João II imortalizou dois séculos depois "o meu pai só me deixou as estradas" porque no início do século XIII as poucas estradas que haviam ainda eram pouco mais do que as que existiam no período romano.
Este fortalecimento do poder senhorial, que se avolumou com um testamento onde até os filhos das barregãs eram largamente beneficiados (inclusivé os filhos da célebre "Ribeirinha", amante de seu pai), teve como consequência o despoletar de um conflito com os maiores beneficiários: As sua irmãs e o clero, encabeçado pelo arcebispo de Braga.
O caso da infantas D. Teresa, D. Sancha e D. Mafalda resume-se em poucas palavras. D. Sancho concedeu-lhe, entre outras terras, povoações fortificada como Alenquer e Montemor-o-Velho, o que foi contestado pelo novo monarca, que se recusou a cumprir o testamento de seu pai. Deverá ter sido este conflito que motivou a convocação das primeiras cortes portuguesas, em 1212, logo no primeiro ano do seu reinado, embora este assunto só ficasse resolvido, entre avanços e recuos, no reinado seguinte, pelo débil D. Sancho II.
O conflito com o Clero e a Santa Sé teve altos baixos, embora o interdito tenha sido lançado por diversas vezes sobre o reino, tendo o próprio monarca morrido excumungado. O clero português tomou o partido das infantas, até porque tinha também sido largamente contemplado pelo testamento do "Povoador". A animosidade face ao monarca cresceu ainda mais com as disposições saídas das corte de Coimbra, como a lei das desamortizações (que impedia o clero de comprar terras), embora esta lei fosse contornada pelo facto de os clérigos, individualmente, o pudessem continuar a fazer, facto a que o monarca não se opôs, provavelmente para evitar mais uma frente de batalha.
Contudo, o conflito com a Igreja foi sobretudo no campo dos principios. D. Afonso II entendia (e bem) que o poder temporar devia submeter-se ao poder da coroa, ao passo que o clero, chefiado pelo Arcebispo de Braga, entendia que a Igreja só tinha que responder perante Roma, ou seja partilhariam a soberania do jovem reino, sem que o monarca pudesse imiscuir-se nos seus assuntos.
Foi a mesma situação que ocorreu com as infantas. As doações por testamento às infantas criavam um poder paralelo, completamente inconcebível no quadro de um Estado, mesmo medieval. Foi a primeira vez na nossa história que essa questão se colocou de uma forma tão clara e teve como consequência a criação de dois partidos: os defensores do poder real e os defensores do poder senhorial. As duas partes entraram em conflito naquela que foi a primeira guerra civil portuguesa e que foi ganha, pelo menos parcialmente, pelo Rei.
Com a regularização dos pagamentos à Santa Sé de rendas devidas deste o reinado de D. Afonso Henriques, foi encontrada uma solução que satisfazia ambas as partes: As infantas mantinham o usufruto dos castelos de Alenquer e Montemor, mas os Templários ficariam senhores da terra, solução que nunca foi efectivada, mas que seria preferível, aos olhos das infantas, à nomeação de alcaides da confiança do monarca, que D. Afonso II antes reclamara. Com a Igreja a situação sempre foi mais titubiante, obrigando o tal arcebispo de Braga por diversas vezes ao exílio no Reino de Leão (que tomou o partido das infantas, pelo Rei ter sido casado com a Infanta D. Teresa, apesar de a ter repudiado), conflito nunca sanado em vida do monarca.
É neste quadro de fortalecimento do poder real que D. Afonso II leva a cabo as confirmações e inquirições. As confirmações obrigavam os senhores a obter o beneplácito régio quando o novo monarca assumia o poder, relativamente aos privilégios concedidos pelos antecessores. As inquirições foi uma política de fiscalização do património senhorial, por forma a evitar abusos ou situações que não se compaginassem com a vontade dos monarcas. Está por provar que estas duas medidas tenham tido efeitos práticos.
O reinado de D. Afonso II não se esgota só nesta contenda. No campo militar assinale-se dois factos importantes, embora em nenhum deles o monarca tenha estado presente. A pedido do Rei de Castela, Afonso VIII, enviou um pequeno contingente à batalha de Navas de Tolosa, integrando uma aliança peninsular para fazer frente aos Almohadas, cujo oitavo centenário se assinala este ano. Afonso II não se terá arrependido de ter enviado tão modesta contribuição, pois o seu ex-genro, rei de Leão, que não integrou esta aliança, aproveitou o ensejo para nos invadir, a pretexto da defesa do seu filho (e da Infanta Dona Teresa).Outro facto relevante no domínio militar foi a conquista de Alcácer do Sal, embora tenha sido iniciativa do Bispo de Lisboa, D Soeiro Viegas, que desafiou os cruzados a tomar este importante ponto estratégico, que tinha caído nas mãos dos "infieis" no reinado de D. Sancho I.
Foi ainda no seu reinado que se data o primeiro documento oficial escrito em Português (o seu testamento).
D. Afonso II morre aos 37 anos, o que era considerado, mesmo para o século XIII, precoce, tendo o seu filho e sucessor, D. Sancho II, apenas 6 anos. Em testamento manifestou o desejo de o poder ser assumido pelos seus homens de confiança, no entanto este facto não impediu que o partido senhorial tivesse saído vencedor em toda a linha, ou não fosse o novo monarca tutelado pela irmã do arcebispo de Braga! Esta foi a raiz da crise que levou ao afastamento de D. Sancho e ao reinado de seu irmão, D. Afonso III.
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