Tudo começou em Tomar. Depois veio
Santarém, Lisboa e o País. Esta é a história desconhecida do rapaz sem sono que
chegou a ministro e se deslumbrou pelo caminho.
O telefone toca em Santarém, na casa de Natalina Pintão.
Uma, duas, três e mais vezes. "Está lá? Quem fala?" Jovial,
apesar dos 70 anos, a voz feminina espanta-se com o interesse pela sua figura,
tantos anos volvidos. A professora de Francês e Português, da qual os jornais
do Ribatejo parecem já não guardar sequer fotografias, é quase uma
desconhecida, mas ocupou cargos relevantes nos anos oitenta. Primeiro, foi
vereadora do PSD no município e acabou deputada no Parlamento, à boleia da
primeira maioria absoluta de Cavaco. Diz-se que Miguel Relvas, então
secretário-geral da JSD e já influente no partido, deu um jeitinho, tentando
agradar ao reduto familiar da rapariga com quem namorava. "Não creio, mas
nunca falámos sobre isso. Eu ia em 11º, um lugar não elegível. Alguns
candidatos à minha frente foram para o Governo e só assim cheguei lá."
Hoje, Natalina Pintão não é apenas uma ex-militante do PSD desencantada
com a política. É a sogra de Miguel Relvas. "Fui", corrige seca, mas
educadamente, não querendo ignorar o recente desenlace matrimonial entre o
ministro e a sua filha. "Estou zangada e magoada, mas gosto muito
dele."
Conheceu-o pelos 18 anos, começara Miguel a namorar Paula, ambos
enfarinhados na Jota laranja. "Era um rapaz dinâmico, trabalhador,
estimulante, talvez demasiado mexido", admite. Desde cedo, Natalina ficara
"parva com a bagagem cultural que ele tinha, dava para vários
cursos", reconhece. Já casado, Relvas forrou a casa com livros,
"sobretudo ensaio e política. A biblioteca dele era uma coisa! A minha
filha já não sabia onde pôr mais volumes". Por vezes, encontravam-se ao
fim de semana, na residência do casal, em Lisboa. Lá o apanhou "a fazer trabalhos e a
estudar" para as cadeiras da Universidade Lusófona. "Isso vi eu! Não
foi o melhor dos genros, mas a licenciatura, só pelo percurso político, já
estaria bem entregue." Admira-lhe, de resto, a resistência e o coração
capazes de aguentar "jogos e pressões" num País "habituado a dar
demasiada importância a doutores e engenheiros". Ter-se-á ele deslumbrado,
pelo menos? "Isso. É essa a palavra. Deslumbrou-se. Na política, é preciso
haver regras e ele esqueceu-se um bocado das regras." O Miguel de outrora
"parecia que ia mudar o mundo", mas transfigurou-se com a passagem
dos anos e a sucessão de cargos. "Algo se alterou nele. Mas quem não gosta
de se pavonear e ser elogiado?"
Quando eu era pequenino...
Quem conheceu o pai de Miguel Relvas admite que "um valente e
sonoro par de tabefes" aplicado pelas suas "poderosas manápulas no
rosto insolente do seu pouco responsável filhote" talvez tivesse resolvido
o problema a tempo. "Tenho a certeza de que profundamente o desgostariam
os sucessivos e infelizes protagonismos do filho primogénito", escreveu,
há dias, no blogue A Voz Portalegrense, o antigo professor Martinó Coutinho,
conterrâneo de João Miranda Relvas em Portalegre. "É uma metáfora,
naturalmente, mas ele resolvia várias coisas à chapada. Era um bocadinho
autoritário, mas tinha muita estima por ele", refere à VISÃO.
Alto, corpulento, de voz grossa, o pai do ministro adjunto, falecido há
meses, foi dirigente da Mocidade Portuguesa na região, coordenou a página da
juventude no jornal A Voz de Portalegre e geriu o Alentejano, emblemático café
da cidade, que renovou ao ponto de ali introduzir a então revolucionária
máquina de café "cimbalino", assim mesmo, à moda do Porto. A sacudidela
nos costumes não ficou por aí. João Relvas "renovou a frasqueira e o
serviço de pastelaria", ofereceu "música de dança" às
quartas-feiras, recuperou o restaurante no qual José Régio e David
Mourão-Ferreira conviveram, criou um serviço postal e montou uma tabacaria,
onde uma "empregada simpática" vendia jornais, revistas e livros.
Referenciado pela sua "inteligência, firmeza e liderança", João
Relvas embeiçou-se por Branca Cassola e com ela casou, unindo duas famílias
pertencentes "ao íntimo património" da cidade. Rumaram, depois, para
África, onde viveriam grande parte da vida. Ela tornou-se enfermeira, ele foi
um quadro superior da Diamang, a Companhia de Diamantes de Angola.
Miguel Relvas quase ia nascendo lá, mas acabou por vir ao mundo a 5 de
setembro de 1961, em Lisboa, para que a mãe pudesse beneficiar da inovação do
parto sem dor. A epidural, à época ainda não totalmente fiável, deixou mazelas:
o bebé Relvas revelou à nascença problemas na visão, que tentou corrigir mais
tarde: "As inovações são boas, depois de testadas", referiu, numa
entrevista, para justificar o trauma.
O rapaz é o mais velho de três irmãos.
Até aos 13 anos, viveu em Angola com os pais, mas o 25 de abril de 1974
leva-o ao Colégio Nuno Álvares, em Tomar, onde o pai tinha amizades e garantias
de sossego nos intervalos das vindas a Portugal para visitar os catraios. O
estabelecimento, um dos mais prestigiados do País, "albergava malta do
Minho a Timor", segundo antigos alunos. Vasco Pulido Valente estudou lá.
Alguns dos principais dirigentes das ex-colónias também. É o caso de Carlos
Feijó, atual chefe da Casa Civil do Presidente angolano, José Eduardo dos
Santos, com quem o ministro Adjunto se encontra com frequência quando se
desloca a Luanda.
O casal Relvas continuaria em Angola por bons anos. Miguel e os irmãos
serão alunos internos em Tomar, recebendo o mais velho uma boa mesada do pai
para acudir às necessidades. Dele e dos manos. "Era um bocado paizinho,
tomava conta dos irmãos, recebia a correspondência paterna", recorda um colega
desse tempo. "Mas o Miguel achava que o João e o José lhe deviam
obediência. Tinha alguma ascendência sobre eles, claro", recorda um dos
primeiros professores de Relvas.
O colégio ganhara fama de corrigir os alunos retorcidos, mas Relvas
saíra "bem comportado e responsável", segundo colegas, embora
"exibicionista, irrequieto e pouco estudioso", na opinião de docentes
que cedo lhe toparam outras ambições. "Andava sempre de volta dos
professores, insinuava-se." Caiu no goto de Anselmo Borges, então a dar
aulas de Filosofia no Nun'Álvares. A correção, as mesuras e o aproveitamento
escolar garantiam-lhe saídas "quando queria", recorda Elsa Mariete,
companheira de turma e amiga íntima, durante vários anos. Onde Relvas se
metesse "era para fazer bem. Foi diretor do jornal da escola e
repreendia-nos quando as coisas não eram feitas como ele queria. Passava a vida
a ler jornais e revistas, no Café Santa Íria, levava tudo a sério. Eu
não", conta. Nas alturas de borga, Miguel também não se fazia rogado: subia
ao palco em sketches teatrais e era ele, quase sempre, o cabecilha de festas e
bailaricos, mas sem perder a compostura. "Pense nisto: ele foi interno
muito novo, num colégio difícil, onde havia castigos para os prevaricadores.
Colegas nossos foram presos ou acabaram nas drogas. Quem resiste a isto sozinho
torna-se muito forte", assegura Elsa. Com tal perfil, o jovem apaixonado
por romances históricos e policiais conseguiria aproximar-se até da mais
improvável das figuras: enquanto faz o 12º ano no liceu de Tomar, numa turma só
de raparigas, Miguel dormirá em casa do "Senhor Pinto", a fera dos
prefeitos do colégio.
'Os gajos da massa'
No final dos anos 70, as lutas estudantis contra a União dos Estudantes
Comunistas (UEC) e a militância na Jota social-democrata não são ainda a via
rápida para o sucesso, mas constituem o itinerário central. "Nasceram-lhe
os dentes na JSD", recordam. Miguel alinha nas estratégias, é um bom
operacional, hábil a dar a volta a adversários. Um deles quis chegar-lhe a
roupa ao pêlo, mas dias depois já andavam de abraços. "Não havia gajo
melhor do que o Miguel para isso", conta um antigo dirigente laranja de
Tomar, conviva de almoços e jantares de intriga, onde Relvas ganharia a fama de
"papa-manteigas" por debulhar o pão e as ditas enquanto o diabo
esfregava um olho.
Miguel entra nos anos 80
a toda a velocidade. "Ele já tinha algum dinheiro e
ia a Lisboa com mais facilidade do que nós, de comboio. Quando queríamos falar
de algum assunto com o Pedro Pinto, o líder da JSD dizia: 'Já tratei disso com
o Miguel'. Fazia tudo nas nossas costas", recordam. José Pereira da Silva,
antigo governador civil de Santarém, militante número dez no distrito, reparou
nele, numa assembleia de militantes, na cidade dos templários, "era meio
estrábico, foi logo notado". Num ápice, Miguel torna-se imprescindível.
"Ligava-me às oito da manhã, era exigente com ele e com os outros. Não
deixava que lhe passassem a perna", recorda este ex-dirigente do PSD na
região.
Era a época da "geração da Jota deslumbrada com a vida partidária e
não com os estudos." No rol, cabem, entre outros, Pedro Pinto, Carlos
Coelho, Passos Coelho e Relvas, então mais empenhados em lutar contra o Serviço
Militar Obrigatório e o aborto do que marrar nas sebentas. Miguel só não
alinhava com a maioria nas questões angolanas: a UNITA tinha força na Jota, mas
ele sempre foi apoiante do MPLA. Nunca se sentiu um retornado e dizia-o
abertamente. "Já aí, estava um passo à frente. Depois, foi o primeiro de
nós a perceber a importância do dinheiro e a juntar-se aos gajos da
massa", conta um dirigente.
Anos à frente, Relvas, vice da JSD, passará por cima do secretário-geral
da jota e reunirá amiúde com Dias Loureiro, então na secretária-geral do
partido, o cargo que sempre representou o cofre do PSD.
Segundo ex-membros da JSD, Abílio Rodrigues, antigo governante de
Balsemão, empresário, deputado do partido e dirigente distrital, terá
emprestado carros a Relvas, financiado campanhas internas e assegurado
"grandes quantias" à organização. "Absurdo! Ajudei-o, mas era
mais de levá-lo para Lisboa e trazê-lo", contrapõe o ex-dirigente do
Benfica.
Militantes do PSD ainda desconfiaram das intimidades de Miguel com o CDS
local. Tudo por causa da amizade com Duarte Nuno de Vasconcelos, vereador
centrista na AD que governava a Câmara no início da década de 80. Durante anos,
quando se deslocava a Tomar, Relvas ficava em casa de Nuno. No ano passado, na
Festa dos Tabuleiros, Pedro Passos Coelho e a esposa também lá dormiram.
"O Miguel é um bom e fiel amigo", diz Vasconcelos, que já não reside
no concelho. Os dois encontram-se amiúde. Por pouco não se cruzaram nos
negócios. Duarte Nuno trabalhou na Prointec, que detinha a Gibb, empresa de
consultores de engenharia, gestão e ambiente, onde Miguel também já foi
consultor, embora noutra altura. Vasconcelos deixou a Gibb antes de esta ser
vendida à Finertec, onde Relvas trabalhou até ir para o Governo. Pelo meio, há
investimentos no Brasil e em Angola e clientes como a EDP e a REFER.
"Nunca tivemos qualquer relação profissional", refere Duarte Nuno,
que estava na fila da frente, a bater palmas a Miguel quando, no ano passado,
ele recebeu o prémio Personalidade do Ano, do jornal O Mirante.
Debates ideológicos, questões de fundo, sempre foram areias movediças
para Miguel Relvas. A sua praia eram as táticas, as horas ao telefone,
contactando com centenas de militantes um a um. A ilustração política de Miguel
deve muito aos conselhos distritais que se faziam ao sábado. "Alguns
dirigentes discursavam a partir do que tinham lido no Expresso e ele bebeu
muito disso", conta João Moura, militante em Ourém e adversário de Relvas
em eleições internas. Segundo os amigos, para o ministro é uma dor de alma ver
o "seu" semanário fazer manchetes que lhe encravam as ambições. "Teria
alguns sábados mais descansados se parasse a privatização da RTP",
ironizou, há dias, insinuando a existência de uma campanha do grupo Impresa, de
Balsemão, contra si.
A leitura compulsiva, com mais ou menos páginas ou lombadas, nem sempre
preveniu deslizes. Em meados dos anos 90, os deputados da Comissão Parlamentar
de Juventude, a que Miguel presidia, foram recebidos na cadeia de Coimbra.
"Quero agradecer esta oportunidade", começou por dizer Relvas.
"É sempre importante conhecer os presos no seu habitat natural."
Talvez esteja aqui, quem sabe, a explicação para a quase mudez dos seus
24 anos de vida parlamentar: durante esse período, Miguel esteve seis anos
calado. Fez 16 intervenções e interpelações. Deputados do PSD garantem que
alguns dos seus discursos tiveram ghost-writers de peso. O deputado Miguel
aparecia, sobretudo, associado à criação de novas freguesias, vilas, cidades e
concelhos. Anos volvidos, o dr. Relvas defende um novo desenho do poder local,
com menos despesas, lugares e autarquias. Das comissões a que presidiu -
Juventude e Obras Públicas - só boas memórias, mesmo entre a oposição:
"Queria resolver os problemas de toda a gente. Quando percebia uma gafe,
não espetava logo a faca", recorda um socialista. Mário Lino, o
ex-ministro de Sócrates, comprovou "o caráter porreiríssimo" das
sessões a que foi sujeito, segundo se comentava no seu gabinete. Relvas,
entretanto, recusou-se a falar à VISÃO sobre qualquer assunto relacionado com o
seu percurso pessoal, profissional e político.
O céu pode esperar?
Os anos passaram com ele sempre à espera do elevador da glória. E a
fazer por isso, claro. Empanturrou contactos, fidelidades e ligações em
jantares de vitela e carne assada. Nos momentos altos, era dos últimos a
deitar-se e dos primeiros a acordar. "Em Tróia, num congresso da JSD,
levantou-se cedo e foi bater às portas dos quartos para os delegados irem
votar. É persistente e resistente. Um sempre-em-pé", reconhece António
Tavares, antigo secretário-geral da JSD e atual provedor da Misericórdia do
Porto, que lhe reconhece generosidade. "Uma vez, tive de abandonar uma
universidade de verão dos jovens quadros da NATO, em França, com apendicite e,
quando cheguei a Lisboa, tinha-o à minha espera para carregar as malas."
Quando é eleito deputado, em 1985, Relvas já era também calejado nas
piruetas necessárias. A maioria dos delegados de Tomar entrara no Congresso da
Figueira da Foz disposta a apoiar Cavaco Silva. Miguel está com João Salgueiro,
mas é mais rápido do que a própria sombra a mudar de lado.
Em Lisboa, começou por viver num quarto, na Avenida 5 de Outubro.
"A velha da casa não te atura, temos de te aturar nós!", brincavam os
dirigentes da Jota. Depois de casado, irá viver para o Alto dos Moinhos, mas,
nos primeiros tempos na capital, Miguel não tem carro, vive sem ostentação e
mantém a JSD e o PSD de Santarém sob controlo remoto. Chegará o dia em que
exibirá o relógio, os fatos, o automóvel topo de gama e entregará as chaves aos
amigos de Tomar "para darem uma volta", "meterem gasolina"
ou fazerem de seus motoristas. Neste vai e vem, estabelece relação estreita com
jornalistas, para dizer o mínimo. "Alguns eram estagiários, hoje são
editores. Nunca conseguíamos falar com ele às horas de fecho dos jornais. Sabia
as manchetes todas de véspera ou colocava ele as notícias", recordam
dirigentes do PSD.
Ao longo dos anos, Miguel mandará postais de boas festas e cartões de
aniversário aos militantes mais anónimos ou de topo. Telefona a confortar os
que estão doentes, foram internados ou perderam familiares. É íntimo, "amigo
do seu amigo". Hoje, sabe dezenas de contactos na ponta da língua, trata
centenas de militantes por tu e mantém o mesmo telemóvel pessoal há anos.
"Sei o número dele e não sei o da minha mulher. Tanto atendia o pastor de
cabras como o militante ilustre. É o verdadeiro doutor honoris causa da
política", conta João Moura, antigo presidente da JSD/Santarém. Um dia, no
primeiro dos jantares semanais que manteve com ele, no restaurante O Rafael,
ouviu-o, de coração aberto: "Divergências, tudo bem. Traições, não. Se me
criticares, só te peço que me avises antes", disse Relvas.
Amigo às cores
Esteve com Fernando Nogueira, andou nervoso com Marcelo Rebelo de Sousa,
passou-se para o lado de Durão Barroso, zangou-se e fez as pazes com Santana
Lopes. Ignorou Manuela Ferreira Leite, não engole Luís Filipe Menezes, dá-se
bem com Marques Mendes e acreditou em Passos Coelho no deserto e levou-o ao poder como
se carregasse sozinho o andor.
Da JSD ao partido, do Parlamento ao Governo, a ascensão de Relvas fez-se
com um olho em Santarém e outro nas relações úteis. Uma das suas fraquezas é
até bem capaz de estar a meio do caminho. "O Miguel será sempre um homem
com dificuldades para ser número dois em Roma, pois vê-se sempre como o chefe
da guarda pretoriana", caricatura António Tavares, contemporâneo de Relvas
na JSD.
A jogar em "casa", o atual ministro foi sempre conciliador.
Mas também implacável, se as conveniências o exigissem. O movimento Verdade e
Democracia, surgido no interior do PSD/Tomar pela mão de históricos desagradados
com a "marca" Relvas, quase o derrubava, mas só beliscou. "Não
vale tudo para ganhar eleições", diziam os críticos, enquanto ele, pouco
dado a teorias, ia buscar militantes a casa e alugava táxis para os levar às
urnas. "Sempre teve o seu Boby e o Tareco. Até ao Diabo dava à
volta", ilustra um opositor, recordando a contenda.
Seguiram-se purgas, expulsões, abandonos. Isabel Miliciano, a primeira
mulher a enfrentar a sua corte numa lista de oposição na concelhia, também
aprendeu a lição, mas de forma mais dura: "Houve promessas de muitas
coisas, empregos e sei lá que mais. Até para arranjar vinte nomes para a lista
foi até à última", recorda a proprietária d´O Templário, o semanário que
resgatou das influências de Miguel. "Quando não der mais, não dá. Mas o
jornal morrerá de pé", refere esta antiga vereadora do PSD.
"Demiti-me do partido em 2009, saí do rebanho, mas a corrupção é
transversal, vai do adro da Igreja até ao topo. As pessoas vendem-se por um
litro de alcatrão ou para tapar um buraco à porta", acusa. Miguel só seria
apanhado em falso nos anos 90, quando periódicos nacionais e locais falaram do
seu envolvimento nas "viagens-fantasma" dos deputados e num suposto
esquema de moradas falsas para embolsar o dinheiro das deslocações entre Lisboa
e o seu círculo eleitoral. Relvas morava, então, na capital, mas registara, no
Parlamento, endereços onde nunca residiu. Um deles era a casa de uma vendedora
de fruta no mercado, antiga colega do colégio. "Então tu dás a morada sem
a minha autorização?! Nunca pensei que me fizesses uma coisa destas!",
atirou-lhe a mulher, numa ação de campanha. Acalmados os ânimos, Miguel
encolheu-se: "Desculpa, não era para tua casa, era para a senhora da
frente."
O grande facilitador
Na região, Relvas foi sempre figura de porta aberta, sem sectarismos nem
preconceitos. Vários dirigentes e antigos autarcas do PS local apareceram
colocados em assessorias e lugares confortáveis do distrito ou do Estado.
Convidou um antigo candidato do BE para presidir às comemorações dos 850 anos
de Tomar e "desenrascou" a faculdade que a filha de um dirigente do
Bloco desejava para prosseguir os estudos. Não gostou de ser desafiado por um
candidato do CDS, em Tomar, com interesses em Angola, mas, tempos depois, lá
estava ele à espera do amigo em Luanda. "Só deixa de falar com alguém se
for malcriado com ele", diz quem lida com Relvas desde miúdo.
Fernando Patrocínio representa para Tomar "o que Sócrates
significou para Atenas". Foi um dos primeiros militantes de
extrema-esquerda na região e pediu ajuda ao deputado Relvas na defesa dos
trabalhadores da fábrica Mendes Godinho. "Fui ter com ele ao Parlamento e
ele abriu-me portas para o Mira Amaral e o Laborinho Lúcio. Encaminhava,
pronto. Mas aquilo não dava em nada, a verdade era essa. No fundo, é um
cabotino. Sempre se pôs em bicos de pés. Se lhe deram peso foi por causa de
alguma equivalência."
Noutras épocas, alargando a sua influência, Miguel "inventou"
Mira Amaral para cabeça de lista no distrito, durante três mandatos. O antigo
ministro da Indústria de Cavaco viu nele "um elemento ativo, excelente
organizador". Depois, os caminhos separaram-se. Mira, contudo, foi andando
por ali. Em 2005, a
Associação Empresarial de Santarém (NERSANT) contratou a elaboração de plano
estratégico para a região ao atual presidente do BIC (ex-BPN), através da
Sociedade Portuguesa de Inovação, da qual é administrador, por 110 mil euros.
Do plano foi "aprovado praticamente tudo", segundo a associação, e o
nome de Miguel nem sequer veio à baila. "Tivemos percursos diferentes e
nenhum deve nada ao outro." Com Mira Amaral e Morais Sarmento na
assistência, o NERSANT atribuiu a Relvas a medalha de ouro da associação antes
de António Campos, cunhado do ministro Adjunto, ocupar a presidência da
Comissão Executiva do grémio comercial. Os dois nem sempre estiveram do mesmo
lado nas lutas internas do PSD. Campos, antigo deputado e ex-diretor da
Segurança Social, é consultor da Santa Casa de Misericórdia de Tomar, cujo
provedor é Fernando de Jesus, secretário do presidente da Assembleia
Municipal... Miguel Relvas. O cunhado é ainda administrador da Fundação Infante
de Sagres, com interesses num Parque de Astronomia e Planetário em Angola.
Figuras com ligação ao PSD nacional não se têm dado mal com Tomar,
apesar dos problemas financeiros da autarquia, acentuados ao longo dos anos, na
gestão de António Paiva, que abandonaria o município para gerir o QREN da
Região Centro. A sociedade de advogados de Nuno Morais Sarmento, ex-ministro de
Durão Barroso, elaborou, para o município, o caderno de encargos relativo à
venda do Convento de Santa Iría. Em 2008, a Câmara assinou, também, um contrato com
a agência Youngnetwork, por serviços de consultoria no valor de 42 mil euros
anuais, quando à frente da empresa se encontrava Rui Calafate, adjunto do
antigo primeiro-ministro Santana Lopes.
Por estes dias, a imprensa e os meios políticos locais desconfiam da
sombra de Relvas numa alegada privatização do Hospital Nossa Senhora da Graça, em Tomar. A população
lamenta a perda de qualidade dos serviços, suspeitando-se de interesses
alicerçados no facto de a Euromedic, firma da qual o ministro foi consultor,
ter adquirido, em julho de 2008, ao médico Correia Leal, a empresa Diamecom, um
dos maiores centros de diagnóstico privados da região. "É baixa
política", reage Correia Leal, atual diretor clínico da Euromedic e antigo
dirigente do Benfica, no tempo de Vale e Azevedo. "Apoio a remodelação,
mas porque a gestão do Centro Hospitalar do Médio Tejo é miserável, com laivos
de desonestidade", explica. "Conheço Relvas há anos, mas não somos
íntimos. Não creio que se meta nestes assuntos." O governante já veio
dizer que a reestruturação "é para levar por diante, em nome da
racionalização dos meios humanos e materiais". Carlos Carrão, presidente
da Câmara de Tomar, eleito pelo PSD e amigo do ministro, reconhece que o
hospital "está a ser claramente esvaziado". Há seis meses pediu
reuniões urgentes ao Ministério da Saúde. Resposta? "Nem um telefonema.
Até falei sobre isto com o Miguel, mas não aconteceu nada." Lamenta-se dos
seus primeiros seis meses de presidência, após o fim do "bloco
central" que vigorou na autarquia: "O País é um Inferno e o Diabo
instalou-se em Tomar."
Por um canudo
Nos últimos 12 anos, Miguel Relvas faltou apenas a duas reuniões da Assembleia
Municipal. Gostam do seu estilo, mesmo na oposição, mas o namoro com a terra
adotiva já teve melhores dias. "Há muito medíocre com a cabeça de fora, em
Tomar", desabafou, numa entrevista à Rádio Hertz, antes das eleições
legislativas do ano passado e das esperas e manifs por causa das polémicas das
portagens, do hospital e da redução de freguesias. Os "casos"
nacionais em que o seu nome apareceu envolvido também não ajudaram. "Não
valho nada, mas para o que ele precisar de mim, cá estarei. É uma situação
difícil, mas quando o sacrifício ultrapassa o gosto, deve sair-se. E o
sacrifício dele é notório", reconhece o autarca Carlos Carrão.
A "novela" da licenciatura ainda ajudou menos. E dura.
"Sempre lhe disse: 'Estuda Miguel, estuda, pá!'", recorda o fiel
amigo Jorge Catrau, compincha de "jota" e noitadas, que
"quase" põe as mãos no fogo pelo ministro. "Ele tem a folha
limpa, mas está mexer com muitos interesses." No Ribatejo, o
"canudo" de Relvas sempre foi tema requentado. Ou assunto de
caricatura, pelo menos desde setembro de 2007. O "Guarda-Rios",
pseudónimo do autor de uma coluna, no semanário O Mirante, assinalou, então, o
momento Lusófona com pompa, circunstância e... ironia: "Miguel Relvas era
acusado de nunca ter trabalhado na vida nem sequer como estudante. E também
dizem que se sentia deprimido quando o tratavam por Dr. sem que ele o fosse
realmente. A partir de agora, Miguel Relvas já pode ser tratado por Dr. sem que
as más -línguas possam acusá-lo de propriedade indevida de um título. É Dr. da
mula ruça como o outro é Eng.º de obras acabadas, mas os tempos assim o
permitem e até exigem. E muitas vezes aplaudem."
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