“A FIGURA DE
UM REI REPRESENTA UM ACRESCENTO À DEMOCRACRIA” - D. Duarte Pio de Bragança
Em visita à
cidade de Braga, D. Duarte concedeu uma entrevista ao Igreja Viva. A
“Evangelium Gaudium”, a lei do aborto ou a actual crise são alguns dos temas
abordados por D. Duarte, referindo a alternativa de um regime monárquico
constitucional para Portugal.
Na sua Mensagem para o dia 1 de Dezembro de 2013
refere a Exortação «Evangelium Gaudium» de Papa Francisco como uma referência para
católicos e não católicos. Que ensinamentos podemos retirar desta Exortação, na
sua opinião?
O Papa
Francisco I conseguiu chamar a atenção do mundo leigo actual - em geral muito
ignorante e formado por ideias feitas e preconceitos - para a Doutrina Social
da Igreja. Ele não diz nada que não esteja na Doutrina Social da Igreja, mas
diz de uma maneira muito actualizada, numa linguagem muito simples, sem
formalismos e expressões “caras” que os bispos gostam muitas vezes de usar. Há expressões,
se reparar, que só os bispos e os padres é que usam – ninguém mais usa, por
exemplo, a expressão “hodierno”, já ninguém sabe o que isso quer dizer, e eles
continuam a usar essa expressão. Depois, é claro que uma parte dos movimentos,
dos grupos de pensamento não católicos geralmente hostis ao catolicismo, alegraram-se
muito com frases que ele disse. “Ah! Até que enfim que um Papa diz que não
devemos estar obcecados com o homossexualismo, ou que temos de nos preocupar
maioritariamente com os pobres”. Porque são muito ignorantes, percebem agora o
que a Igreja sempre disse: temos de receber toda a gente, tal como Cristo
recebia as prostitutas, ou como foi comer a casa do cobrador de impostos desonesto
(que depois acabou por se tornar Apóstolo, S. Mateus). De facto este Papa
consegue despertar as pessoas para estas informações muito importantes: o que
ele está a dizer tem sido muito útil para os não cristãos, os não crentes, os
ateus, perceberem coisas que não conseguiam perceber porque fechavam os ouvidos
ao ensinamento da Igreja. É bom que a nossa Igreja em Portugal aprenda algumas
coisas práticas com o Papa.
Também vou
dizer uma coisa que sei que alguns Bispos vão ficar zangados comigo, se lerem
isto: é que eu tenho pena que alguns dos ensinamentos que os Papas têm passado,
muitos bispos portugueses e muitos párocos portugueses não queiram nem saber.
O Papa Bento
XVI, por exemplo, disse claramente (e escreveu) que não se pode de modo nenhum
proibir que se celebrem missas no rito tridentino – nunca foi proibido! Foi
somente permitido que se usassem novas liturgias – e há muitas liturgias em uso
no catolicismo: na Síria, por exemplo.
E porque não
se pode também, em alguma comunidade, celebrar a liturgia tridentina? Depois,
por exemplo, o Papa tentou dar o exemplo e pediu que as pessoas, por uma
questão de respeito e de manifestação de adoração, se ajoelhassem para comungar;
em Portugal os párocos têm muito medo, porque acham que, se fizerem isso ou se
derem essa possibilidade, são acusados de serem ultraconservadores. Eu conheço
um pároco que fez uma coisa muito inteligente: colocou um genuflexório num
lado: quem quiser ajoelha-se, quem quiser fica de pé. Isso é a atitude mais
democrática.
Na mesma Mensagem, aborda a actual crise que o país
vive, uma crise que ultrapassa em muito o âmbito económico. Parece-lhe que uma mudança
de regime, no sentido de uma Monarquia Constitucional, poderia ser o caminho
para uma renovação nacional?
A crise
portuguesa tem basicamente duas origens: ignorância, por um lado, e
imoralidade, por outro (não sei em que percentagem). Os crimes económicos que
foram feitos contra a economia nacional nestas dezenas de anos foram somente
por ganância e corrupção, ou por ignorância. Qualquer dona de casa sabe que, se
gasta mais do que tem, acaba mal; como é que os nossos políticos não perceberam
que, se gastavam 5 a
10% mais do que aquilo que o Estado tinha, acabavam mal? Internacionalmente
denunciava-se essa situação, o professor Medina Carreira denunciava isto, os
economistas sérios também o faziam. No entanto, o Estado continuou a fazer
isto, até entrar em falência fraudulenta quando o governo Sócrates teve de
pedir ajuda internacional. Agora anda toda a gente muito zangada com o médico
que vem tratar das nossas doenças, porque dão-nos remédios muito amargos; mas não
pensamos que nós é que andámos estes anos todos a estragar a nossa saúde
económica: a matar a capacidade produtiva, a destruir a economia e a gastar os
nossos recursos e o dinheiro emprestado pelo estrangeiro, a fazer coisas que
não produzem riqueza: as auto-estradas, a Expo de Lisboa, o Centro Cultural de
Belém... centenas de obras nas Câmaras Municipais, luxos de país muito rico que
mesmo países mais ricos do que nós não têm... fizemos isso tudo e agora não temos
dinheiro para pagar os salários da função pública. E então vêm uns sujeitos que
não percebo se estão de má fé ou se são ignorantes, que são os Juízes do
Tribunal Constitucional, e dizem que “não se pode economizar aqui, não se pode
economizar ali”, não se pode cortar nada... qual é a solução? Aumentar os
impostos, matando-se a economia produtiva. Qual teria sido a vantagem de
Portugal ter um rei? É que, como acontece com os países da Europa mais desenvolvida
(países escandinavos, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido), o rei
discretamente avisa os governantes e diz “vocês estão a ir por um caminho
perigoso”: eu sei que há corrupção aqui... então discretamente ajuda os
governos... de modo que há todo um acrescento à democracia, a figura do rei
acrescenta qualquer coisa à democracia que as repúblicas não têm porque os
presidentes da República, em Portugal, são todos de uma origem partidária. E
portanto estão comprometidos com as políticas – com os erros políticos -
cometidos com os partidos, não têm a autoridade para denunciarem os erros que
estão a ser cometidos – a não ser o general Ramalho Eanes, que hoje quase toda a
gente considera o melhor presidente que tivemos, exactamente porque, como ele
disse, tentou agir como um rei constitucional (foi a definição que ele deu do
seu próprio mandato).
Num regime monárquico constitucional em Portugal, que
mudanças veria no âmbito da Liberdade Religiosa e das relações entre a Igreja
Católica e o Estado? Como entende a Laicidade do Estado?
Os regimes
monárquicos actuais são todos constitucionais e democráticos, com a excepção de
alguns emirados árabes. Creio que o único país da Europa que não tem
verdadeiramente uma Constituição é o Reino Unido, cuja constituição é a Magna
Carta que vem da Alta Idade Média. Onde há ditaduras é quase sempre nas
Repúblicas, há muitas repúblicas ditatoriais hoje e há uns anos atrás eram
mais, a maioria na América do Sul e África. Acho que a separação da Igreja do
Estado é indispensável na nossa época, só em alguns países muçulmanos é que
isso não acontece. O que não quer dizer que, se a maioria dos portugueses são de
formação e de ética (e, graças a Deus, de prática) católica, o Estado não tenha
de respeitar a religião e a moral da maioria dos portugueses: não quer dizer
que não tenha de respeitar também as outras religiões: mas não se podem pôr,
digamos, em pé de igualdade, por exemplo no sentido de os muçulmanos quererem
que as suas datas sejam feriados nacionais. Não faria muito sentido,
considerando que são uma pequena minoria. Mas têm de ser respeitados: eu
frequento muito a Sinagoga de Lisboa, tenho ido a cerimónias hindus, etc. Eu
acho que todas as religiões são um caminho para Deus, só que cada povo tem uma
cultura, e o nosso tem uma cultura cristã, e é essa cultura cristã que faz com
que o nosso comportamento seja um comportamento caridoso, benévolo, tolerante,
e não um comportamento radical, como outros países do mundo têm, com outras religiões.
Também condena a actual lei do Aborto, referindo que
“tem provocado um genocídio encorajado pelo Estado e pago com os nossos
impostos”. Que posição defende neste âmbito?
Penso que é
o problema mais grave que temos em Portugal. Nós ainda hoje queixamo-nos do
genocídio que os nazis fizeram na Alemanha, que os soviéticos fizeram, e
dizemos que é inaceitável que os povos tenham aceite essas coisas. Nós, em
cinco anos da lei do aborto livre conseguimos exterminar uma geração inteira de
portugueses, porque foram mortos mais de cem mil crianças pela lei do aborto –
pagas por si, pagas por mim, somos todos cúmplices disso, todos temos uma quota-parte
neste genocídio. Quando o número de crianças que nasceram no ano passado foi de
oitenta mil, em cinco anos matamos cem mil, matamos mais de uma geração. E isto
é, do ponto de vista económico perigosíssimo, do ponto de vista social
dramático, do ponto de vista moral é um crime colectivo nacional, que nos corta
de algum modo da graça de Deus – um país que aceita, porque aceitámos todos, porque
não fomos votar, ou votámos erradamente, ou votámos a favor desta lei, e
portanto de algum modo somos todos responsáveis por esta situação. E faz-me
muita impressão não ouvir mais protestos contra esta lei: há um movimento aqui
em Braga, o Partido para a Vida, que se movimenta contra a lei mas... mesmo no
dia dos Santos Inocentes, um dia em que toda a gente falou sobre a maneira como
as crianças são maltratadas, não ouvi ninguém a escrever que era preciso reformar
esta lei. Em Espanha já se está a reformar a lei do aborto livre, vários países
europeus estão a voltar atrás, em Inglaterra deputados do Partido Trabalhista
dizem que é uma lei que escraviza as mulheres porque as mulheres são obrigadas
a abortar, obrigadas pelos pais, pelos amantes, pelos patrões que dizem “você
agora não pode faltar ao trabalho durante seis meses, e portanto faça é um
aborto”; portanto é uma lei em que em 90% dos casos vai contra a vontade das mulheres.
Quase sempre as mulheres prefeririam ser apoiadas e ajudadas em vez de
recorrerem a esta solução.
Falando agora um pouco da sua história, em Angola
chegou a liderar em 1972 um movimento de oposição ao Estado Novo, organizando
uma lista multiétnica e independente à Assembleia Nacional. Tal atitude
valeu-lhe a expulsão de Angola por decisão de Marcelo Caetano. Pode contar-nos
um pouco sobre este acontecimento?
Eu organizei
a lista, não a cheguei a integrar: era uma lista formada inteiramente por
angolanos, a maioria negros, alguns europeus, e tinha como objectivo dar uma
alternativa à política angolana dizendo que queriam mais democracia, mais
participação, mais justiça, mais representatividade das populações angolanas,
mas defendendo que a separação dos vários territórios portugueses era um erro
enorme e que Angola tinha todo o direito de ser portuguesa como o próprio território
português. O Marcelo Caetano – que tinha já preparada uma espécie de conspiração
para “despachar” o ultramar - ficou muito aborrecido e muito incomodado e
expulsou-me de Angola. Porque ele tinha feito uma combinação com americanos
para a independência de Angola – provavelmente menos dramática da que aconteceu
em 1974, mas não sendo também a solução ideal. O ideal era reformar, resolver
os problemas que incomodavam grande parte dos africanos – como a justiça, a igualdade,
a democracia - e depois, mais tarde, fazer um referendo e saber se o povo
queria continuar português ou não. É o que o Marcelo Caetano não aproveitou, o
que poderia ter feito – caminhou no caminho errado e conduziu o país ao
desastre, que foi de facto o que aconteceu em 1974: em nome da restauração da
democracia, nós destruímos a vida, a economia, a paz de milhões de pessoas. Foi
preciso esperar trinta anos para finalmente terem novamente uma vida normal em
Angola, Moçambique, Guiné etc. – embora na Guiné ainda não tenham essa
normalidade. E em Timor, enfim, sofreram tanto. Todos esses mortos, toda esta
destruição foi provocada por irresponsabilidade e por uma conspiração
internacional entre os EUA por um lado e a União Soviética por outro. E é
altura de deixar de sermos enganados, de mentirmos pela história, e de
assumirmos o que realmente se passou: não podia ter sido pior. Dito isso, acho
que é de todo o nosso interesse ter a melhor colaboração possível com os
governos dos países da CPLP, e tentar reformar uma fraternidade e, quem sabe,
no meu entender uma união lusófona, uma união dos países de língua portuguesa que
poderiam um dia vir a ter uma política económica comum, uma política de defesa,
uma moeda comum. É um caminho que poderíamos seguir e que não seria totalmente
incompatível com a União Europeia.
Nasceu em Berna em 1945, e teve como padrinhos de
baptismo, por representação, o papa Pio XII, a rainha-viúva Amélia de Orléans e
a Princesa Aldegundes de Liechtenstein. Chegou a conhecer o Papa Pacelli?
Sim,
visitei-o por duas vezes, em criança, e fiquei muito impressionado. Acho que é
injusto não estar a ser beatificado quando outros Papas mais recentes estão a
caminho da beatificação, só porque era muito conservador em alguns aspectos, como
era próprio da época dele; mas foi de facto um homem muito santo, e que além
disso correu grandes riscos pessoais para salvar a vida de muitíssimos judeus
que estavam a ser perseguidos em Itália e na Alemanha.
Na Arquidiocese de Braga estamos a celebrar um ano
dedicado à Liturgia. Que sugestões aponta para tornarmos a liturgia mais bela e
mais atraente para os fiéis?
Há uns
tempos atrás os meus filhos estiveram connosco em S. Tomé e Príncipe e gostaram
imenso de ter ido lá à missa. Hoje perguntam-me porque é que as missas em Portugal
não são tão bonitas como as missas em S. Tomé – e foi uma missa que durou duas horas!
Mas muito bem cantada, muito participada, com todo um cerimonial, etc. Estive
há poucos dias na missa de domingo em Díli, Timor: vieram vários portugueses comigo.
Todos choravam, de comoção: uma missa belíssima. Nós temos em Portugal missas
muito bonitas, é verdade: temos outras que são, enfim, mal cantadas, em que o
coro não tem preparação nenhuma, e às vezes há párocos que precisariam talvez
de uma reciclagem sobre como se faz um sermão, como se fala hoje numa linguagem
que as pessoas entendam. No Minho há missas muito bonitas e muito bem
conduzidas. Houve uma época em que se cometeu o que eu considero um erro, que
foi o de meter uma música “leiga” porque se achou que os jovens iriam considerar
mais animada. Mas na verdade estragou a beleza das missas. Outra coisa: hoje em
dia há a tendência de meter umas canções que ninguém acompanha, que ninguém
percebe; por exemplo, a missa no Alentejo, a música segue um ritmo alentejano e
os cânticos são alentejanos. E toda a gente percebe, e toda a gente pode acompanhar,
porque corresponde à cultura de um povo. Quando as missas correspondem à
cultura da população, sobretudo nos meios rurais, mas também nos meios urbanos,
as pessoas acompanham. Se não, às vezes metem umas cantorias lá pelo meio que
se tornam numa espécie de intervalos musicais, de um espectáculo, que não têm
muito a ver. Acho que haveria muita coisa a ser discutida e tratada, reunindo
teólogos, especialistas musicais e representantes dos fiéis.
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