Estou há que
séculos para te escrever. A primeira vez que dei por ti foi quando dei pela tua
falta. Tinha 19 anos e estava na Inglaterra. De repente, deixei de me sentir um
homem do mundo e percebi, com tristeza, que era apenas mais um dos teus
desesperados pretendentes.
Apaixonaste-me
sem que eu desse por isso. Deve ter sido durante os meus primeiros 18 anos de
vida, quando estava em Portugal e só queria sair de ti. Insinuaste-te. Não fui
eu que te escolhi. Quando descobri que te amava, já era tarde de mais.
Eu não
queria ficar preso a ti; queria correr mundo. Passei a querer correr para ti -
e foi para ti que corri, mal pude.
Teria
preferido chegar à conclusão que te amava por uma lenta acumulação de razões,
emoções e vantagens. Mas foi ao contrário. Apaixonei-me de um dia para o outro,
sem qualquer espécie de aviso, e desde esse dia, que remédio, lá fui
acumulando, lentamente, as razões por que te amo, retirando-as uma a uma dentre
todas as outras razões, para não te amar, ou não querer saber de ti.
Custou-me
justificar o meu amor por ti. És difícil. És muito bonito e és doce mas és
pouco dado a retribuir o amor de quem te ama. Até dás a impressão que tanto te
faz seres odiado como amado; que gostas de fingir que estás acima disso,
olhando para os portugueses de agora como o céu olha para os passageiros nos
aviões.
Já que
estava apaixonado, sem maneira de me livrar - nem sequer voltando para ti e
vivendo contigo mais trinta anos - que remédio tinha eu senão começar a
convencer-me que havia razões para te amar.
Encontram-se
sempre. E, a partir de certa altura, quando já são seis ou sete razões que se
foram arranjando ao longo dos anos, deixamos de amaldiçoar este amor que nos
prende a ti e, inevitavelmente, começamos a sentir-nos, muito estúpida e secretamente,
vaidosos por te amarmos. Como se fôssemos nós que tivéssemos sido escolhidos.
Digo nós mas
falo por mim. Digo eu sabendo que não sou só eu, que nós somos muitos.
Possivelmente todos. Tragicamente todos, um bocadinho. Se calhar estamos todos,
de vez em quando, um bocadinho apaixonados por ti.
A tua
pergunta bocejada, de país farto de ser amado, amado de mais, aborrecido com
tanto amor, apesar da merda que tens feito e da maneira como nos pagas, é
sempre a mesma: «Diz-me lá, então, porque é que me amas...»
Pois hoje
vou-te dizer. Não me interessa nada a tua reacção. Estás a ver? Já comecei a
mentir. É sinal que a minha carta de amor já começou.
Amo-te,
primeiro, por não seres outro país. Amo-te por seres Portugal e estares cheio
de portugueses a falar português. Não há nenhum outro país, por muito bom ou
bonito, onde isso aconteça.
Mesmo que
não achasse em ti senão defeitos e razões para deixar de te amar, preferia
isso, mesmo deixando de te amar, a que não existisses.
Se deixasses
de existir, o meu olhar ficava de luto e nunca mais podia olhar para o resto do
mundo com os olhos inteiramente abertos ou secos ou interessados.
Para que
continuasses a existir, mesmo fazendo cada vez mais merda, trocava
imediatamente ir-me embora de ti e nunca mais poder voltar e nunca mais poder
ver-te, e nunca mais encontrar um português ou uma portuguesa, e nunca mais
poder ler ou ouvir a língua portuguesa.
E olha que
este é um desejo que muitas vezes tenho.
Esta é a
única verdadeira prova de amor: fazer tudo para que sobreviva quem se ama.
Mesmo que nunca mais te víssemos, Portugal, saberíamos que continuavas a
existir, que as nossas saudades teriam onde se agarrar. Por muito que mudasses,
mal te deixássemos e nunca mais te víssemos, já não mudavas mais.
Mesmo que
não houvesse em ti um único pormenor que não houvesse nos restantes países do
mundo, que são muitos; mesmo que houvesse um país escondido que fosse
igualzinho a Portugal em todos os pormenores; mesmo assim eu amar-te-ia como se
fosses o único país do mundo, diferente em tudo.
Portanto, já
viste, ó Portugal: não preciso de nenhuma razão para te amar. Amo-te sem razão.
Amo-te às cegas, antes sequer de olhar para ti. Podes ser o pior país do mundo,
ou o melhor, ou o mais monotonamente assim-assim. Não me interessa. Amo-te.
Amo-te à mesma. Amo-te antes de falarmos nisso.
Amo-te tanto
que, quando perguntas porque é que eu te amo, não fico nervoso nem irritado.
Não preciso de tentar dar uma razão convincente. Amo-te à mesma, fiques ou não
convencido.
E, mesmo que
te aborreças de ouvir todas as razões que tenho para te amar, eu continuarei a
dizê-las, porque gosto de dizê-las e porque, que diabo, também eu preciso, às
vezes, de me lembrar e de me convencer do quanto eu te amo.
Amo-te mesmo
que sejas impossível de conhecer ou de descrever. Isto é muito importante. O
Portugal que eu conheço e descrevo é apenas o Portugal que eu julgo, se calhar,
conhecer (pouco) e descrever (mal).
Cada pessoa
apaixonada por ti está apaixonada por um Portugal diferente do meu. Até o meu
Portugal é, conforme os climas, bastante diferente do meu - para não dizer
estrangeiro.
Por exemplo,
uma das razões por que te amo é o teu clima. Acho que tens um bom clima. Mas
não julgues que há muitos portugueses apaixonados por ti que concordam comigo.
Esses julgam o teu clima dia a dia e hora a hora e gostam dele, quando muito,
vinte por cento do ano. Em cada cinco horas do teu clima, gostam de uma e
odeiam quatro.
Pois eu
amo-te sem saber sequer se o teu clima é bom ou mau. Não tenho a certeza, mas
não interessa: amo-te mesmo ignorando tudo a teu respeito. Amo-te mesmo estando
completamente enganado. A pessoa convencida sou eu. Quem está convencido que
ama, quando fala do seu amor, não quer convencer ninguém. Quer declarar que
ama. Se é bom ou mau nem secundário é. Fica noutro mundo, onde vivemos.
Como vês,
não preciso de razões para te amar. Mas tenho muitas. E boas. A primeira delas
é secreta e embaraça-me confessá-la: amo-te, Portugal porque, não sei como e
contra todas as provas e possibilidades, acho que és o melhor país do mundo.
Pronto. Está
dito. É uma vergonha pôr as coisas de uma maneira tão simples. Mas era isto que
eu estava há que séculos para te dizer: amo-te, Portugal, por seres o melhor
país do mundo.
Como vês não
sou o romântico que estava a fingir ser, que te ama sem precisar de razões para
isso. Tenho uma razão muito interesseira para te amar: acho que és o melhor
país do mundo. Por muito relativista que eu seja noutras coisas, acho mesmo que
tive sorte de nascer aqui. Em
ti. Aqui , entre nós.
Desculpa.
Mesmo assim,
insistes em perguntar: que tens tu de tão especial, que os outros países não
têm?
Essa íntima
vaidade, por exemplo. Tu não és orgulhoso. Mas, muito bem disfarçada, tens uma
vaidade sem fim. Dizes-te feio e vestes-te mal mas, quando passas por um
espelho, espreitas e achas-te giro. E se alguém te diz que és feio e estás mal
vestido, não ficas ofendido - achas que aquela pessoa é obviamente estúpida e
não tem olhos na cara.
Ou, pelo
menos, não tem o discernimento e o bom gosto necessários para apreciar a tua
oblíqua mas inegável formosura. A tua beleza, estás convencido, está reservada
para os apreciadores. A ralé passa ao lado e não vê: deixá-la passar.
A tua
vaidade é tanta que até te permites um grande desleixo. Sabes que, na terra
onde nada plantaste, há-de crescer um jardim preguiçoso que um dia será
selvagem e bonito, sem qualquer esforço teu. Deus e o tempo trabalham por tua
conta.
Sabes que a
tinta fresca salta muito à vista e que é cansativa. Esperas, despreocupado,
pela beleza que há-de vir com a passagem dos tempos. E a vaidade que sussurra,
preguiçosamente, a quem insista em aproximar-se: «Sim, eu sei que sou uma casa
bonita e não, não me lembro da última vez que fui pintada. Eu cá não preciso de
me abonecar.»
Graças ao
desleixo que a tua vaidade consente, mudas menos do que os outros países. As
pessoas acham que és conservador, que és contra a mudança. Mas não é isso. És
vaidoso e preguiçoso porque achas que não precisas de grandes esforços ou
mudanças: sabes que continuas encantador.
O teu
desleixo também é causa de muito sofrimento mas não é numa carta de amor que
vou falar dele. Também tem consequências agradáveis.
Por exemplo,
dizes que queres ser um país de primeira categoria. Mas sabemos todos que não
queres. Gostas de ser de segunda, como gostas de não ser de terceira. Gostas de
ter países melhores do que tu, para visitar ou invocar, quando fazes aquela
fita de lamentar que não seja possível teres tudo o que tens de bom, menos tudo
o que tens de mau, trocado pelo melhor que houver nos outros países.
Tu não
queres nada a não ser que gostem de ti. E não estás disposto a fazer nada por
isso. Nem é preciso serem muitos a gostar. Se calhar, até te bastava um. Aposto
que é essa a impressão que consegues dar a cada um dos desgraçados, como eu,
que estão apaixonados por ti.
Eu poderia
perder anos a fazer um cuidadoso retrato de ti. Por muito verosímil que fosse,
davas uma olhadela e dizias com desdém, a fazer-te caro ao mesmo tempo: «Isso
não sou eu. Isso é outro país qualquer que inventaste...»
É a tua
maneira, Portugal amado, de garantir que continuaremos a tentar retratar-te.
Tanto te faz que o retrato seja feio ou bonito, desde que seja de ti.
Quanto mais
variados forem, mais gostas. Até tu, nas tuas paisagens, varias e hesitas tanto
e recusas-te a decidir, como quem não tem pressa e, no fundo, não escolhe nem
decide, porque quer tudo.
Preferias
ser amado por quem tem razões para te odiar? Isso sei eu. Paciência. Eu amo-te
porque mereces. Eu amo-te pelas tuas qualidades. Preferias não tê-las. Para que
o amor fosse mais puro, mais contraditório, mais injustificável. Mas tens
qualidades.
Desculpa lá
dizer-te isto, Portugal, mas amar-te é uma coisa simples.
Amo-te,
aconteça o que acontecer. Amo-te por causa de ti. Não é apesar de ti. É por
causa de ti. Não há outra razão. Nem podia haver uma razão mais simples.
Por muito
que te custe ouvir (apesar de eu saber que não só não te custa nada como gostas
de ouvir), digo-te: é tão grande o meu amor por ti que até consigo amar-te sem
dar por isso.
Já viste?
Miguel
Miguel
Esteves Cardoso, in 'Jornal Público' (10 Junho 2011)
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