Pela
longa e boa amizade que mantenho com alguns elementos da família
Montalvão, há muito conhecia algumas histórias deste solar. Devia-lhe
por isso uma visita e ruinosa intervenção, que pela distância entre este
monumento e o meu Quartel General, foi adiada até uma oportuna viagem
ao Norte, animada pela companhia do JJR e do bom amigo Dr. Mário
Freitas, tornando possível este velho sonho que tive o privilégio de
viver.
Uma vez
que este monumento não está sequer cadastrado pela DGPC, toda a pesquisa
histórica teria ficado comprometida sem a preciosa ajuda de um dos seus
ilustres descendentes, o nosso amigo e seguidor, D. Luís de Montalvão, a
quem devo este texto perfeitamente tecido, onde as memórias ainda vivas
desta nobre casa contrastam com a sua triste realidade.
Certamente
muitas perguntas ficarão por responder, e muitas lacunas não serão aqui
preenchidas, é no entanto necessário não deixar de referir que o
abandono a que foi votada deveria ser criminalizado por incúria
autárquica e crime de lesa património...ah, se ao menos tivesse uma
parede pintada pelo Miró... aqui vos deixo o contributo do amigo Luís,
para que possam ter uma vaga ideia do tesouro que todos os dias definha
sem que nada se faça ou alguém aja em nome de todos nós...
Situado
no Concelho de Chaves, freguesia de Outeiro Seco, o Solar dos Montalvões
foi um edifício erguido ao longo de pelo menos duas centenas de anos,
provavelmente entre os séculos XVII e XVIII e com algumas adaptações
feitas no XIX.
É um
enorme bloco que se desenvolveu em torno de um pátio interior, segundo
um modelo arquitectónico velhíssimo, vindo ainda de um tempo anterior a
Roma e cujas várias fases construtivas são visíveis por diferenças
estilísticas na fachada ou no interior, pelas diferenças de nível entre
os vários corpos, separados entre si por pequenos degraus e ainda
através de algumas fontes bibliográficas, arquivísticas e epigráficas,
que atestam os vários períodos de construção da casa.
A
casa que na região é conhecida por Solar dos Montalvões, família cuja
história se liga ao edifício por um período de quase 250 anos, pertencia
originalmente à família Álvares Ferreira, conforme nos indica José
Timóteo Montalvão Machado, no livro os Montalvões, e terão sido eles os
construtores iniciais do solar, isto é, dos lados Sul, Nascente e
Poente. Aliás, o brasão que se encontra na fachada nobre apresenta as
armas dos Álvares Ferreira e não dos Montalvões.
Ainda
segundo José Timóteo Montalvão Machado foi um membro desta família, o
Capitão de Cavalos José Alvares Ferreira (morto em 1738) o grande
construtor do solar, como o atesta o facto de ter várias e extensas
cavalariças nos baixos da casa (corpos Nascente e Norte).
No
entanto pelas diferenças de nível entre estes dois corpos e a cozinha,
presumimos que algumas partes sejam anteriores à vida do Capitão de
Cavalos José Alvares Ferreira, portanto em pleno século XVII. Talvez a
parte mais antiga da casa seja o corpo Sul, que corresponde ao que foi a
cozinha.
Os
Montalvões só aparecem nesta casa em 1746, quando uma jovem de catorze
anos, Antónia Maria de Montalvão Morais (1732-1809), casou com Miguel
Alvares Ferreira (1716-1779), filho do já referido capitão de cavalos,
José Alvares Ferreira. Desde essa época, até aos dias de hoje, o nome
Álvares Ferreira foi caindo aos poucos e vingando o apelido Montalvão,
uma família com origem na vizinha Galiza e que se passou para Portugal,
no tempo do domínio dos Filipes.
É do
tempo de vida desse casal, Miguel Miguel Álvares Ferreira e Antónia
Maria de Montalvão Morais, que devem ter tido uma existência
economicamente desafogada, que temos mais documentos e notícias acerca
de grandes obras no Solar.
Conforme
documentação existente no Arquivo Distrital de Braga, sabemos que entre
1761 e 1762, Miguel Alvares Ferreira, requereu autorização para erigir a
capela do solar, sob invocação de São Salvador do Mundo, em cumprimento
de um voto de sua mãe, Maria Sobrinho. Este processo, cujos documentos
tinham a missão de provar que o casal tinha bens para financiar a
construção da capela e assegurar a realização de uma missa perpétua por
alma de Maria Sobrinho, descreve parte das construções já existentes,
demonstrando-nos que em 1762, o corpo poente do solar, a fachada nobre,
já estava concluída.
"...as cazas do doante …confinão e correm com duas ruas publicas ambas
com cunaes, solio e frizio e cornija Huma pello norte, e outra que corre
pello poente com estrada mais publica para o sul adonde tem hum arco
bem feito e bastantemente alto, e no meyo remate huma pedra de armas das
asendesias do doante e por este arco se entra para o patteo das cazas, e
nesta parte que pega acima das ao patteo e he munto capaz, e corre para
o Sul pretende fazer a Cappella com porta para o poente"- No entanto,
as obras da capela, que é o corpo arquitectónico do solar com um
tratamento mais cuidado, foram só concluídas em 1784, já depois da morte
de Miguel Álvares Ferreira (1779), pela sua viúva Antónia Maria de
Montalvão Morais, que a 29 de Abril desse ano pediu provisão para benzer
e consagrar a capela, a “qual se acha perfeitamente acabada”, conforme
se pode ler no respectivo processo no Arquivo Distrital de Braga.
Também é
do tempo desta Senhora, Antónia Maria de Montalvão Morais, que se
constrói a escada interior do pátio de honra, em 1782, conforme se pode
ver pela data da verga da porta e se encomenda também o sino da capela,
em 1790, e que hoje se encontra a salvo da destruição na Capela de Nossa
Senhora do Rosário, na mesma povoação de Outeiro Seco.
Acerca
da talha que ornamentava a capela, hoje pilhada e retalhada nada se
sabe, mas era de excelente qualidade, a julgar por fotografia antigas.
Creio mesmo que terá sido concebida por André Soares (1746-1769), o
grande arquitecto ou entalhador bracarense, ou talvez por algum dos seus
discípulos, embora essa hipótese careça de provas documentais.
Estes
são os dados mais objectivos acerca da cronologia da construção do
Solar, que não é uma peça arquitectónica de excepção, como o Solar de
Mateus ou Palácio da Brejoeira, mas é um exemplar muito representativo
do tipo de casas que a fidalguia rural mandava construir em
Trás-os-Montes nos séculos XVII e XVIII.
Embora
não contasse com peças de mobiliário de excepção, o seu recheio era
significativo. Possuía uma importante biblioteca, localizada num dos
salões do corpo nobre do solar, que contava com cerca de 1900 títulos, o
que era muito para a época, onde avultavam muitas edições dos séculos
XVIII, XVII e ainda quinhentistas, sendo que algumas das obras eram
raras.
Foi
vendida pela família ao desbarato no início dos anos 80 a um
alfarrabista de Lisboa. Desta biblioteca, conservou-se apenas o
catálogo. Também num dos salões nobres existia aquilo que a família
chamava um museu, que na verdade era aquilo que tecnicamente se designa
por um gabinete de curiosidades, formado por muitos objectos
arqueológicos, etnológicos e colecções de filatelia e numismática.
Foi
sobretudo constituído por um dos habitantes da casa, o Padre José
Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), um homem extremamente culto, um
jurista, um pregador, um arqueólogo, um numismata, um jornalista, enfim
um polígrafo, como se diria no século XIX.
Foi
sócio da Academia das Ciências e da Sociedade Portuguesa de Arqueólogos,
correspondia-se com homens eminentes, como o Abade de Baçal ou o
arqueólogo Mendes Correia e no seu tempo, a casa tornou-se um pequeno
centro de saber, tendo recebido entre outros intelectuais a visita do
arqueólogo José Leite de Vasconcelos.
Todo
esse espólio foi disperso pelos vários membros da família. Esta casa
transmontana foi também o palco dos amores ilícitos entre José Rodrigues
Liberal Sampaio e a senhora da casa, Maria do Espírito Santo Ferreira
Montalvão (1856-1902), uma fidalga que teve a coragem de assumir a
relação com um clérigo e de viver maritalmente com ele e dele ter tido
filhos.
Não foi
um escândalo tão grande como os amores de Ana Plácido e Camilo, mas sem
dúvida viveram com coragem uma paixão camiliana. Maria do Espírito Santo
está sepultada na casa, na capela, apesar de em 1902, já ser
expressamente proibido sepultar os mortos dentro das igrejas.
Em 1912,
o Solar de Outeiro Seco viu também passar os militares da segunda
incursão de Paiva Couceiro, que em fuga para Espanha, abandonaram muitas
armas pela propriedade da casa, sendo algumas delas recolhidas e
conservadas no museu da família.
Nesse
período, a casa foi revistada pelas tropas republicanas e José Rodrigues
Liberal Sampaio, um monárquico convicto, esteve alguns dias escondido
num quarto secreto do Solar, até conseguir fugir para Espanha.
A
família manteve-se orgulhosamente monárquica e a bandeira azul e branca
esteve hasteada na casa durante toda a república. Só nos anos 30, já no
Estado Novo, quando o presidente Carmona visitou o Solar, alguém se
lembrou que os tempos já eram outros e a bandeira foi recolhida para o
chamado museu.
A
Casa continuou a ser ocupada por José Maria Ferreira Montalvão
(19-05-1878/24-5-1965), filho dos amores ilegítimos do padre com a
fidalga, um grande proprietário, o homem que pagava maior contribuição
autárquica de todo o distrito de Vila Real, e que assegurou até à sua
morte a vida de um grande domínio agrícola, quase feudal, de uma forma
autoritária, mas ao mesmo tempo paternalista e generosa, a acreditar nos
testemunhos de quem ainda se lembra dele na aldeia de Outeiro Seco.
Depois da sua morte, a casa ficou desocupada e entrou num lento
processo de declínio. Os seus descendentes venderam em 1986 o Solar à
Câmara Municipal de Chaves, sem acautelar o seu destino e a respectiva
utilização.
As
imagens da capela deram entrada no Museu Municipal de Chaves, algumas
delas estão hoje expostas no Museu de Arte Sacra de Chaves, mas o Solar
foi pura e simplesmente abandonado à sua sorte pela edilidade flaviense.
Vagabundos
instalaram-se na casa, acenderam fogueiras que queimaram os pilares e
fizeram ruir a estrutura. A talha da capela foi pura e simplesmente
pilhada. Por ordem ou iniciativa de sabe-se-lá-quem, diversa cantaria
foi retirada da casa e espalhada por vários pontos da aldeia. No pátio
rural em frente à cozinha foi instalado um palco feito com pedra da casa
e muito, muito cimento.
Enfim, é um processo longo, triste e inexplicável de incúria por parte
da autarquia de Chaves, que deixou ruir um dos edifícios mais
interessantes do Concelho.
Perante
tanta tristeza, fica a memória do tempo em que a casa era uma espécie de
senhorio feudal, uma honra, em que bastava que alguém segurasse a
aldraba da porta principal do pátio, para ficar fora do alcance da
justiça régia.
O meu
Pai, que não é ainda tão velho como isso, recorda-se de na sua meninice
ouvir falar ainda de um senhor muito velhinho, fugido da justiça, que se
refugiou no Solar e terminou ali os seus dias. Hoje, o Solar dos
Montalvões é apenas um dos muitos e banais exemplos, de que quase todos
se estão nas tintas para o património cultural.
Fonte: Fernando Ribeiro
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