A proposta do Governo, sobre a reforma da administração local, apresentada no denominado "Documento Verde", avança objectivos e princípios louváveis, mas falha no alcance, nos pressupostos políticos e nos critérios metodológicos. Apresentamos uma alternativa para a realização de uma Reforma estrutural, consistente e estável, da administração central, territorial e local.
Nas suas linhas fundamentais, o mapa administrativo do País foi desenhado por Mouzinho da Silveira e Passos Manuel em 1835/40. Entretanto o País e o seu território mudaram profundamente. Passámos de um país extensivamente rural, com a população distribuída por todo o território, sem acessibilidades, para um país predominantemente urbano e de serviços, com a população concentrada no litoral, e com boas acessibilidades na generalidade do território.
O País mudou, mas a administração territorial ficou parada no tempo. Torna-se necessário actualizar o "software do País" através de uma profunda reforma da administração. Mas interessa saber como. A proposta do Governo tem inegáveis méritos. Mas também encerra muitos perigos e problemas. Vejamos, em primeiro lugar, os méritos.
São definidos objectivos claros e consensuais para a reforma: maior proximidade entre decisões e população, melhoria dos serviços públicos, aumento da eficiência de gestão, economias de escala e reforço da coesão e da competitividade do território. E propõe-se uma matriz compreensível de eixos da reforma.
Contudo, são muitos os problemas e perigos que a proposta encerra, exigindo um debate sereno, a nível local e nacional, e a formulação de contrapropostas realistas e eficazes. Vejamos, então, os principais problemas.
Em primeiro lugar, esta reforma não tem subjacente uma visão contemporânea do território. Baseia-se em critérios administrativos e estatísticos que não correspondem à realidade territorial, entendida esta nas suas dimensões de espaço geográfico, mas, também, económico, social, cultural e identitário.
Em segundo lugar, esta reforma aparece desligada da reforma do Estado a nível central e regional. E, no que se refere a redimensionamento, só abrange as freguesias, deixando de fora os municípios. O que é incoerente.
Em terceiro lugar, esta reforma prefigura uma agenda política para acabar com a regionalização, pondo a tónica no reforço das áreas metropolitanas e das comunidades intermunicipais (CIM). Ora, só a regionalização permitirá uma efectiva descentralização e a racionalização da administração do País.
Além disso, com esta proposta corre-se o risco de enfraquecimento e perda de competências dos municípios a favor das CIM e das freguesias redimensionadas. Quando os municípios e o municipalismo são o que temos de mais consistente na nossa administração.
Noutro plano devemos questionar a proposta dos executivos homogéneos. Talvez se justificassem há 15/20 anos atrás, mas hoje seriam contraproducentes. O escrutínio da actuação dos executivos é feito pelos vereadores da oposição, com regularidade e eficácia, sem entravar a gestão municipal.
Por outro lado, o reforço dos poderes de fiscalização das assembleias municipais pressupõe - para além da qualificação dos seus membros - que elas funcionem com regularidade, dotadas de uma Comissão Permanente, com meios técnico-administrativos qualificados. Tudo isto exige recursos financeiros que, por ora, não existem.
Na proposta do Governo existe um outro problema sério: as tipologias e critérios de caracterização e agregação das freguesias não resistem a uma primeira aplicação. Dão resultados absurdos, designadamente para as freguesias das fronteiras municipais.
Uma inconsistência adicional da proposta do Governo é avançar com a reestruturação sem debater as competências. Promete-se o reforço de competências, mas não se coloca essa decisiva questão, desde já, em debate. Ou seja: mexe-se na forma, sem ter em conta o conteúdo. Ou, como diz o ditado popular, põe-se o carro à frente dos bois.
Finalmente, os calendários consignados não permitem o debate sereno e aprofundado que o assunto exige e o Governo promete.
Importa criar uma alternativa política, de amplo consenso, para concretizar uma reforma da administração local compaginada com a reforma do Estado, a nível central e regional. Reforma que exige tempo e recursos, e que deve ser, necessariamente, escalonada. Na criação dessa alternativa tem especiais responsabilidades o Partido Socialista, como maior partido da oposição e com experiência nestas matérias. Propomos, então, em quatro pontos, as bases em que pode assentar essa alternativa:
1. Estabelecer um acordo de regime, entre os partidos que a tal se disponham, para a realização de uma reforma estrutural da administração do Estado integrando os níveis central, regional e local
2. Essa Reforma seria faseada, ao longo de um período de 5 a 7 anos, cuidando adequadamente das transições entre as actuais e as novas instituições
3. Entretanto seriam realizadas - até Dezembro de 2012 - as mudanças que se apresentam viáveis na proposta governamental: novo regime do sector empresarial local; redução do número de vereadores e dirigentes municipais
4. Simultaneamente, seriam desencadeados os estudos de caracterização e organização territorial para definir um quadro sustentável para a descentralização de competências e critérios eficazes para a concretização da reforma.
A proposta do Governo é ambiciosa e consensual nos seus princípios, mas frouxa e apressada no âmbito e calendário. Falha nas condições políticas e nos critérios de realização. Vai provocar conflitualidade política e social. Propomos, em alternativa, o caminho da concertação com vista à realização de uma reforma estrutural consistente.