O regime democrático e parlamentar que hoje vivemos, não obstante as
suas imperfeições, não tem a sua génese no 25 de Abril de 1974, apesar de ser
essa a tese que continua a ser difundida urbi et orbi, mas sim na
revolução de1820, desencadeada no Porto.
Tinha havido uma primeira tentativa em 1817, que culminou
com o enforcamento de Gomes Freire de Andrade no forte de S. Julião na Barra –
apesar de ser general e de, por esse motivo, ter o direito de morrer fuzilado,
com a honra que o seu estatuto lhe conferia - cuja implicação na conjura nunca
foi completamente esclarecida. Não foi o único sentenciado, com os restantes
conspiradores a não terem melhor sorte, com as forcas a serem instaladas no
Campo de Sant’Ana, rebaptizado de campo Mártires da Pátria, em homenagem aos
que ai perderam a vida.
Depois desta primeira tentativa, que tinha por objectivo
acabar com a situação aviltante de estarmos, após a Guerra Peninsular, numa
situação de protectorado do Reino Unido, três anos depois a revolta triunfa.
Em 1820, aproveitando uma viagem ao Rio de Janeiro do
representante máximo da coroa britânica, o General Beresford, para conseguir a
formalização de mais poderes junto de D. João VI, um grupo de burgueses portuenses,
constituído sobretudo por grandes comerciantes e advogados, consegue a
sublevação de vários regimentos militares no norte, alastrando o movimento
rapidamente a Lisboa.
Apesar da revolta ter sido materializada por militares, a
sua posição foi sempre subsidiária face aos verdadeiros líderes, onde
pontificavam as figuras de Manuel Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva de
Carvalho, homens que viriam a ter um papel decisivo nos primeiros passos do
constitucionalismo português.
Se o objectivo expresso foi a libertação da dependência da
Inglaterra, este desiderato seria apenas um primeiro impedimento para
concretizar o seu projecto político, que vem a plasmar a mudança mais radical
jamais operada na nossa história. O detentor do poder, até então unanimemente
reconhecido na figura do monarca, passa para as mãos do povo, que, por vontade
própria, elege os seus representantes para uma assembleia constituinte
encarregue de redigir uma constituição que a todos vincula, começando pelo Rei
e pelas altas esferas do clero. Parece um exercício teórico mas na realidade é
uma mudança muito profunda no paradigma até então vigente.
Neste processo cometeram-se muitos erros, como sempre sucede
nos processos revolucionários, com uma tendência para o extremismo. Foi assim
também no 25 de Abril de 1974, com o radicalismo de esquerda.
Voltando à revolução de 1820. Os revoltosos tinham 3 grandes
objectivos a orientar a sua acção:
-Conseguir o regresso do Rei (que tinha partido em 1807 para
o Brasil, na eminência da invasão das tropas de Junot)
- A elaboração de uma constituição democrática
- O regresso do Brasil à condição de colónia.
Este programa político encerra em si contradições à primeira
vista difíceis de explicar. O Brasil, onde a corte se tinha instalado, tinha
ascendido à condição de Reino, tornando-se Portugal oficialmente o Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarve, numa altura em que a Europa já estava
pacificada. Esta condição foi presidida pela abertura dos portos brasileiros às
“nações amigas” – entenda-se Inglaterra – sem os quais a Corte nunca teria
conseguido o seu plano de transferência de soberania para o continente
americano. Os britânicos eram senhores dos mares, condição que Napoleão nunca
conseguiu sequer beliscar – o “bloqueio continental” foi uma consequência da
Batalha de Trafalgar, onde os Ingleses bateram as forças navais francesas, e
que representou um ponto de inflexão na estratégia de Napoleão, que se traduziu
na desistência da tentativa de hegemonia marítima. Os negócios dos britânicos
nos portos brasileiros trouxeram grandes prejuízos aos grandes comerciantes
portugueses, que detinham até então esse monopólio, a maioria dos quais
portuenses, e apoiantes da revolução de 1820, e que viram no movimento
revolucionário uma saída para esta situação lesiva dos seus interesses.
Não deixa de impressionar, como é que um regime que se diz
liberal pretende algo que vai ao arrepio dos princípios básicos do liberalismo.
A minha tese é que as motivações dos conspiradores tinham um carácter
genuinamente político apenas em parte, sendo, como sempre sucede, contaminados
por interesses particulares daqueles que foram os grandes sustentáculos
materiais para a concretização do seu plano político.
Cometeram-se outros erros a começar no texto constitucional
aprovado em 1822, muito inspirado na Constituição de Cádiz, e cujo carácter
radical a votou ao insucesso, sendo fonte de instabilidade, numa primeira fase
com os absolutistas (conduzindo a uma guerra civil) e numa segunda com os
liberais moderados, arregimentados na Carta Constitucional outorgada por D.
Pedro IV.
Não obstante os erros cometidos em 1820, foi este o ponto de
partida para o regime constitucional português que entrou numa linha de
estabilidade após 1851, com o governo regenerador de Rodrigo da Fonseca
Magalhães, e que conheceu o seu estertor na crise do rotativismo entre
Regeneradores e Progressistas, que marcou o final da Monarquia.
Dom Afonso Henriques
Dom Afonso Henriques
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