Referendo na Escócia
Os 50.000 membros da Ordem de Orange são o
último reduto da manutenção do Reino Unido. Protestantes devotos, fiéis à coroa
britânica e opositores dos independentistas, marcharam em Edimburgo. Se o
"sim" ganhar, alguns só terão duas saídas: resistir ou emigrar.
"Um inimigo demoníaco e conflituoso disfarçado de falso patriotismo e de referendo nacional surgiu na
Escócia", dizem.
Algumas centenas de homens vestidos de
laranja e de sósias da Rainha de Inglaterra reúnem-se pela manhã de sábado no
pasto verdejante de Meadows, no centro de Edimburgo. Para os mais distraídos,
poderia tratar-se de um Carnaval antecipado com motivos vitorianos ou da
rodagem de uma cena de um novo filme da saga Hobbit, com o castelo da capital
escocesa como pano de fundo. Não. Trata-se do encontro dos membros do Orange
Lodge (Ordem de Orange), os indefetíveis protetores do Reino Unido,
protestantes, monárquicos e inimigos de todos aqueles que ponham em causa a
unidade britânica.
"Irmãos e irmãs, num mundo de
instabilidade, de insegurança, de proliferação nuclear, do radicalismo
islâmico, as pessoas olham para o Reino Unido como uma terra de esperança, de
paz de sucesso e de unidade", diz o grande capitão da Ordem, Henry
Williamson, no discurso que deu o mote à parada. "Mas um inimigo demoníaco
e conflituoso disfarçado de falso patriotismo e de referendo nacional
surgiu na Escócia, desafiando o nosso amado Reino Unido, e a nossa resposta
como discípulos de Deus é 'não vai haver separação'". À ordem do Capitão,
agitam-se bandeiras e chapéus de plumas. As flautas e os bombos dão início a
uma sinfonia imperial. São 15 mil homens e mulheres, distribuídos por 110 bandas
vindas de toda a Escócia, Irlanda do Norte e Inglaterra.
A Orange Lodge, como é conhecida, foi
fundada em 1795 - durante um período de conflito entre católicos e protestantes
- como uma Irmandade de inspiração maçónica, com o objetivo de defender a
supremacia protestante. Foi batizada em honra do holandês William de Orange,
que derrotou o exército católico de James II, tornando-se monarca da
Grã-Bretanha. Mas isso é História antiga. Nos anos mais recentes, os
"homens laranjas" fizeram manchetes com episódios de violência,
batalhas urbanas contra os católicos em Belfast, ligações a grupos
paramilitares e a hooligans da claque do Glasgow Rangers. Com este cadastro,
percebia-se o aparato policial em torno das fanfarras.
"Há dois grupos que vão certamente
manter a sua intenção de voto até ao fim: os socialistas duros votam 'sim' e o Lodge
vota 'não'. Eles são os extremos do eleitorado", diz Andrew Cairns, 34
anos, supervisor da estação central de autocarros de Edimburgo, quando nos deu
conta da chegada do Lodge à cidade. Andrew é da pequena cidade de Whitburn, a
meio caminho entre Glasgow e Edimburgo, onde existe uma polarização dos votos:
"De um lado estão os mineiros que ficaram sem indústria devido às
políticas de Margaret Thatcher - esses votam 'sim'. Do outro estão os elementos
do Lodge, que na minha cidade têm muito poder. Nunca aceitarão uma Escócia
independente. Muito menos republicana."
Apesar de não fazer parte do Lodge, Andrew
também não concebe a perda da monarquia e receia que a independência dispense
os serviços de Elisabeth II: "Prefiro ter certos poderes nas mãos de um rei
do que nas de um político: nos motins dos anos 80, por exemplo, o que teria
acontecido se Thatcher tivesse o poder de mandar o exército para as ruas? Acho
que as famílias reais têm mais valores éticos".
Ao longo dos quatro quilómetros de desfile,
essa devoção pela dinastia de Windsor fica bem evidente: há posters com as
caras de Elisabeth, William e Kate, até do bebé real. Só o príncipe Carlos não
tem fãs. Os elementos da fraternidade estão preocupados em evitar distúrbios -
a sua reputação é tão má que a coligação No Thanks, a principal força pelo voto
unionista, demarcou-se da manifestação por temer que potenciais confrontos
tivessem um efeito contraproducente. Os seguranças do Lodge apressam-se a tirar
as faixas e os aventais maçónicos aos elementos embriagados. Um, com o tronco
já separado das pernas, caminha para trás como um caranguejo. É expulso do
desfile.
"Vim com a minha família e o que menos
quero é violência", diz Chris Thompson, um rapaz de 24 anos do Lodge 581,
de Liverpool, que traz uma bandeira pintada com as cores da Escócia, de um
lado, e com a do Reino Unido, do outro. "Acho que os lodges escoceses vão
aceitar qualquer resultado sem distúrbios, mas não pararão de se manifestar
caso a independência ganhe." No discurso introdutório, o grande mestre do
Imperial Capítulo Negro da Commonwealth (código: é de Plymouth) também referiu:
"Vamos votar 'não'. Mas se o inimigo ganhar, não vamos baixar os braços.
Amamos a União e só unidos venceremos".
Mas nem todos têm um discurso tão moderado.
Sir William, que se apresenta como grande secretário do Lodge da Escócia
Central, mas sem mencionar o apelido e sem se deixar fotografar, deixa bem
claro que a Ordem de Orange "não aceitará viver numa Escócia independente,
socialista e, possivelmente, republicana". "Eu e os meus irmãos temos
isso bem claro: ou lutamos pela nossa identidade britânica ou emigraremos para
Inglaterra."
A marcha passa pela universidade, pelo
Parlamento e pelo café em que J.K. Rowling, que doou mais de um milhão de euros
à campanha pelo 'não', escreveu as primeiras linhas de Harry Potter. Milhares
de escoceses saúdam a Ordem. Veem-se cartazes a ridicularizar Alex Salmond,
líder do SNP e da causa secessionista, meninos a transportar coroas e senhoras
vestidas para corridas de cavalos a tocar flauta. De repente, debaixo de um
viaduto, a fanfarra cala-se e os misteriosos hobbits desaparecem em autocarros
de volta aos seus condados.
Mais tarde, damos com alguns deles a beber
cerveja no clube maçónico de Edimburgo. Tentamos entrar mas somos imediatamente
intercetados por um dos seguranças da fraternidade: "Desculpe, cavalheiro,
mas só é permitida a entrada a membros, só aos que juraram fidelidade ao
Reino."
Tiago Carrasco / Expresso
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