A MEMÓRIA - MONUMENTO A D. PEDRO IV
(Esta breve história do monumento faz parte do livro A Memória liberal na ilha Terceira)
No dia seguinte à morte de D. Pedro IV, foi lançada na Câmara dos Pares uma proposta para se erguer um monumento que perpetuasse a memória e os feitos do monarca. Tanto esta, como outras propostas semelhantes, foram discutidas e apreciadas, mas os projectos acabavam por ser adiados. Razões de ordem financeira contribuíram para protelar a sua execução, mas o maior óbice residia nas lutas entre as facções liberais “à volta da apropriação e da gestão da memória do Imperador”
Na ilha Terceira, a ideia de levantar um projecto idêntico foi decidida em 1835. Pretendia-se erguer um grande busto no largo fronteiro ao palácio do Governo Civil e a encomenda foi feita a um escultor de Lisboa. Vários cidadãos contribuíram com donativos, que foram entregues a uma comissão, mas o projecto, por ser demasiado dispendioso, foi sendo adiado. Em 1843, tendo em conta que o orçamento da obra ultrapassava as disponibilidades financeiras previstas, o governador civil convocou a comissão para se decidir o destino a dar ao dinheiro recebido.
Como alternativa ao primeiro projecto, decidiu-se que se mantivesse de pé a ideia de fazer um monumento mais modesto. Levantou-se a hipótese de construí-lo na Praça da Restauração, mas a proposta foi rejeitada por causa dos festejos que ali se realizavam anualmente. Em 1842, o Angrense já havia sugerido que fosse edificado no local do Castelo dos Moínhos, cujo terreno pertencia à Câmara: “Do alto d´aquelle sítio, vê-se Angra do Heroísmo, como que servindo de degrao àquelle monumento. Elle ficará sendo o nosso GOLGOTHA MODERNO, onde concorremos a levar tributos do nosso respeito; e onde também deixaremos aos vindouros um padrão dos nossos dias assignalados e gloriosos”. Este acabou por ser o local escolhido.
Para dar andamento ao projecto constituiu-se uma nova comissão liderada pelo conde da Praia, composta pelos seguintes elementos: cor. José Francisco Alvares Barboza, major João Moniz Barreto, João Eduardo Abreu Tavares, José Maria da Silva e Carvalho, Francisco de Lemos Alvares, Francisco de Menezes Lemos e Carvalho, João Luis Borges Teixeira e o comendador António Thomé da Fonseca.
Em 1844, os jornais faziam eco do descontentamento de alguns cidadãos que já não acreditavam na consecução do projecto e pressionavam a comissão para devolver o dinheiro. Neste contexto, Ferreira Drummond veio a público acalmar os ânimos e espicaçar a referida comissão. Defendeu que se devia avançar com a homenagem à memória de D. Pedro IV, “ o heroe do século XIX”, com um monumento simples, de acordo com os parcos recursos. Nesse monumento “ não brilhará o engenho da arte, nem escolheremos peregrinos estatuários”, mas “na azulada pedra de cantaria” serão gravados “os dias memoráveis da nossa história”.
Perante a pressão pública, a comissão e a Câmara iniciaram os trabalhos de limpeza e preparação do terreno destinado ao monumento, em 20 de Maio de 1844.
Em Outubro do mesmo ano, o governador civil recebeu instruções de Lisboa para criar comissões nas freguesias e recolher donativos para erguer na capital um monumento a D. Pedro. A imprensa não criticou a proposta chegada da capital, mas não deixou de enviar recado a Lisboa para que não se esquecesse de “inscrever num cantinho – Ilha Terceira – porque, sem a menor duvida, a não ser este pobre penhasco, decerto que o dador da Carta Constitucional nem cá nem lá teria agora quem se lembrasse de erigir-lhe padrões”. Os terceirenses vinham, deste modo, exigir o reconhecimento público nacional do seu contributo para a vitória do regime liberal. Mas aquela iniciativa nacional contribuiu para que a comissão angrense decidisse avançar com o seu projecto.
No início do ano seguinte, surgiram na imprensa os convites para a cerimónia de lançamento da primeira pedra do monumento. Para além do apelo à população para adornar as janelas, nas ruas por onde iria passar o cortejo, pedia-se também a participação de todos os que fizeram parte dos organismos e corpos militares do movimento liberal. Deviam comparecer devidamente fardados ou, no caso de já não terem fardas, com um laço azul e branco, em forma de roseta, colocado no braço.
A cerimónia do lançamento da primeira pedra ocorreu no dia 3 de Março de 1845, aniversário da chegada de D. Pedro IV à ilha Terceira.
Pela madrugada, rompeu uma salva de artilharia no Castelo, à qual se seguiu o repicar dos sinos em todas as igrejas e girândolas de foguetes em vários locais da cidade. As cerimónias oficiais iniciaram-se na Câmara Municipal, pelas 9H30, anunciadas com uma girândola de foguetes. Na Sala das Sessões, reuniu-se a comissão do monumento, o governador civil e outras autoridades civis e militares, membros do clero e funcionários públicos. Na Praça da Restauração, defronte da Câmara, formou o Regimento de Infantaria 5, que tocou o Hino de D. Pedro.
A primeira pedra que o monarca pisou ao chegar a Angra foi escolhida para lançar os alicerces do monumento e estava colocada sobre uma mesa, na Sala das Sessões. O secretário-geral do governo civil leu os autos da colocação da pedra, a que se seguiram algumas alocuções, vivamente aplaudidas.
O presidente da Câmara iniciou a cerimónia atribuindo ao largo a denominação de D. Pedro IV, cuja proclamação foi repetida em voz alta pelo secretário da Câmara Municipal.
Teotónio Bruges, leu a proclamação de 3 de Março de 1832, na qual D. Pedro, ao desembarcar, declarava assumir a Regência do Reino em nome de D. Maria II. De seguida, o governador civil abriu o cofre, dentro do qual o Brigadeiro Comandante da Subdivisão lançou moedas e medalhas. O presidente interino da Câmara leu o pergaminho com a seguinte inscrição: “ A D. Pedro, o Grande, Duque de Bragança: a Câmara de Angra do Heroísmo em nome dos povos do Districto, em testemunho de gratidão e saudade; 3 de Março de 1845”.
Teotónio Bruges colocou o pergaminho dentro do cofre que foi fechado pelo Governador Civil, cuja chave foi entregue à Câmara. A chave estava presa numa fita azul e branca com a legenda “ 3 de Março de 1832”. Dois dias depois, por proposta do vereador Thomaz José da Silva, a Câmara aprovou que a chave fosse metida num quadro e que ficasse sempre patente na sala das sessões da Câmara. O cofre foi fabricado na Terceira a partir da fundição de moedas que tinham sido feitas com o bronze dos sinos da ilha, em 1829. Mas este cofre de bronze foi, por sua vez, encerrado dentro de outro feito de cedro. Na Câmara Municipal e na Torre do Tombo foram depositadas cópias do pergaminho.
A cerimónia de colocação da primeira pedra obedeceu a um cerimonial definido que procurou integrar sectores representativos da sociedade. A pedra fundamental foi retirada da mesa, colocada numa bandeja e conduzida pelos quatro vereadores mais antigos até ao alicerce; o governador civil levou a colher e a trolha; o Brigadeiro, o coche da cal; o Visconde de Bruges, o nível e o esquadro; o juiz de direito, a masseta; a comissão das obras do monumento, as rachas, o balde e a vassoura; o ouvidor, o cofre, e o presidente da Câmara Municipal, a régua e o compasso. Com a cavidade já aberta, o ouvidor colocou o cofre; o brigadeiro lançou a cal; um dos membros da comissão borrifou-a com a vassoura ensopada no balde; o governador civil estendeu a cal com a colher, e à uma hora em ponto, hora em que D. Pedro desembarcou, assentou-se a pedra fundamental, ao toque do hino de D. Pedro. O juiz de direito apertou-a com as rachas, o presidente da Câmara e o Visconde de Bruges nivelaram e aprumaram, evocando-se assim “o sacrificio patriótico offerecido à liberdade restaurada”.
A cerimónia encerrou com uma alocução do Governador Civil, Nicolau Anastácio Bettencourt, vestido com a farda de soldado académico, que lançou três vivas à “saudosa memória de D. Pedro”. Subiram no ar girândolas de foguetes, os sinos repicaram, o regimento de infantaria e o castelo de S. João Baptista deram salvas e os marinheiros dos catorze navios, nacionais e estrangeiros, ancorados no porto deram vivas à liberdade. Lançadas as flores sobre a pedra fundamental, o cortejo voltou à Praça da Restauração, onde se dispersou. À noite houve iluminação, música nas ruas e uma récita no Teatro Angrense.
A cerimónia acabada de descrever mostra bem o empenho das autoridades locais em transformá-la num acto pomposo preparado minuciosamente. Houve o cuidado de distribuir funções nos actos cerimoniais a um vasto leque de personalidades civis e militares, nomeadamente aos que se haviam distinguido nas lutas liberais. Mas a Igreja parece não ter desempenhado lugar de destaque na cerimónia, dado que o cónego ouvidor se limitou a colocar o cofre no alicerce. A proposta de Drummond, para que fosse o Bispo a lançar a primeira pedra, não se concretizou.
Para assinalar este dia, foi inaugurada a Caixa Económica de Angra e iniciou-se o arranjo da, então chamada, estrada militar que liga Angra à Praia.
Lançada a primeira pedra, a comissão continuou a receber donativos de particulares, mas também se levaram a cabo outras iniciativas. Realizaram-se algumas récitas promovidas por artífices e outros cidadãos cujo produto revertia a favor do monumento que ficou concluído em Junho de 1856. Mas os trabalhos de ordenamento dos espaços circundantes só se iniciaram em 1862. Simbolicamente, o dia 3 de Março deste ano voltou a ser escolhido para concluir as obras da entrada principal e da escadaria. Julgamos não ter havido qualquer cerimónia especial para a inauguração do monumento. Por um lado, porque a pirâmide e o espaço circundante foram concluídos em momentos diferentes e, por outro, porque alguns angrenses na altura não aprovaram o resultado final. O desabafo de Alfredo da Silva Sampaio denuncia esse descontentamento: “ a 20 de Maio de 1844, começava a demolir-se o castello [de S. Luís], para alli se erigir, não a estatua do immortal Duque de Bragança, como devia ser, mas uma pyramide de pedra, quadrangular, que mais parece um obelisco do que um monumento levantado a tão illustre personagem”.
O monumento fica situado no local mais elevado da cidade e sobranceiro a ela. Colocado sobre um supedâneo de três degraus, tem a forma de uma pirâmide quadrangular: o lado do quadrado da base tem 6,82 m e a altura é 21,76 m. Em cada uma das faces, tem uma elipse de mármore, com inscrições em letras pretas. A do lado Norte: A Ilha Terceira; a do Sul: A D. Pedro; a do Nascente: Nasceu em 12 de Outubro de 1798; a do Poente: Morreu em 24 de Setembro de 1834.
Está inserido numa praça quadrangular com 32 m de lado, cercada por um parapeito com assentos de 90 cm de altura. Dá acesso ao Jardim Duque da Terceira, através de um patim com duas escadas laterais, e outra escadaria liga-o ao antigo Largo D. Pedro IV.
Este foi, de facto, o primeiro monumento levantado em Portugal “ à memoria do rei que sacrificou throno, vida, e socego para dar a liberdade a povos sobre que poderia reinar absoluto”. O do Porto só foi inaugurado em 19 de Outubro de 1866 e o de Lisboa a 20 de Abril de 1870.
A historiografia portuguesa esquece, geralmente, o monumento erigido pelos terceirenses e só faz referência aos outros dois. Mas os políticos parece que padeciam do mesmo mal, porque o jornal Angrense criticava os membros da Câmara Alta que, em 1863, afirmavam não existir no país qualquer monumento dedicado a D. Pedro.
Ao longo destes anos, o monumento já sofreu dois grandes rombos: um, em 6 de Fevereiro de 1912, quando foi atingido por um raio; o outro ocorreu com o sismo do dia 1 de Janeiro de 1980, ficando restaurado em 25 de Abril de 1985. O monumento, conhecido na linguagem popular como Memória, é o ex-libris da cidade e permanece como o mais significativo testemunho vivo na memória dos terceirenses que o relacionam com o período liberal.
Carlos Enes
Fonte: Aqui