A crise financeira de 1892 ficou marcada na memória de sucessivos governos e regimes em Portugal como um sinal de que recorrer aos mercados internacionais para investir internamente pode pôr em causa a soberania do país. Uma ideia que ficou até ao 25 de Abril.
O historiador Rui Ramos apresentou no Congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações, a sua leitura da crise de 1890-92. Em entrevista, destaca os paralelos entre a actual situação e a vivida há 120 anos e explica o impacto que a bancarrota teve nas opções políticas dos governos ao longo do século seguinte.
Usa a crise de 1890-92 para compreender a crise actual. Porquê?
Nos últimos 200 anos, Portugal encontrou situações de ruptura ou de ameaça de ruptura de pagamentos, mas, na maior parte dos casos, tiveram origem em guerras. A crise de 1890-92 tem em comum com a crise actual o facto de se desenvolver em tempo de paz. E a de estar articulada com políticas cujo objectivo deveria ter sido o desenvolvimento do país: grandes investimentos, aumento da despesa pública e expansão do Estado. Há esse paralelismo, que leva a que a crise de 1890-92 seja das mais interessantes para reflectir sobre a situação actual.
Que outras semelhanças existem?
Com 120 anos de diferença, existe em comum um sistema representativo estável, com dois grandes partidos a alternarem pacificamente no poder. Temos governos que, até ao momento da crise, abriram um pouco da economia ao exterior e renunciaram ao controlo da moeda. No caso actual, o euro, no passado, o sistema de câmbios do padrão-ouro, que fazia com que, na prática, a moeda que circulava em Portugal fosse a libra inglesa.
Teve o mesmo papel que o euro actualmente?
Era uma moeda internacional que não era controlada pelo Governo e que, portanto, facilitou muito a circulação de capitais para dentro e fora do país, dando acesso ao Governo e aos particulares em Portugal a um crédito mais barato, a crédito europeu. Portanto, também temos isso em comum. Em ambas as crises, isto levou a um grande endividamento do Estado.
E a envolvente externa?
É também semelhante. Portugal tinha beneficiado, nas décadas de 1860 e 1870, com a globalização. O país tinha-se conseguido integrar na primeira onda de globalização através da venda de alimentos para o Norte da Europa e da emigração, por via das remessas. Mas na década de 80 a globalização começa a integrar novos países, alguns deles mais competitivos e que desalojam os produtos portugueses dos mercados do Norte da Europa. E, por causa da revolução republicana no Brasil, as remessas de emigrantes secam. Para agravar a situação, há uma crise internacional provocada por uma bancarrota na Argentina que faz com que haja uma retracção do crédito na Europa. O Estado não se consegue financiar, há uma série de bancos que vão à falência. O Estado tenta ajudá-los e agrava ainda mais a situação. Há cortes de salários de funcionários, suspensão de investimentos públicos.
Tudo semelhante ao que se passa actualmente...
Há toda uma série de analogias que nos permitem pensar que há, em Portugal, problemas recorrentes. Temos uma pequena economia que só consegue crescer integrando-se nos mercados globais, mas que pode ser apanhada pelas mudanças desses mercados globais.
E diferenças? Há algumas entre as duas crises?
Há grandes diferenças, é claro. O país é muito diferente hoje em dia do que era há 120 anos. Neste momento, temos uma população que depende do Estado e o Estado com um tamanho que pouco tem em comum com o de há 120 anos. Nessa altura, a despesa pública não pesaria mais do que 10%.
Como é que as autoridades portuguesas reagiram? Com austeridade?
Há também aqui uma diferença. A opção tomada não foi apenas a da austeridade, foi uma opção de sair daquele enquadramento internacional em que Portugal se encontrava. Abandonou o padrão-ouro e passou a ter, na prática, uma moeda inconvertível. Foi como se, com as devidas distâncias, tivéssemos saído do euro.
Esse abandono surgiu após uma tentativa de resolução da crise pela austeridade?
Pela austeridade e por ajudas financeiras. Em 1892, Oliveira Martins estava como ministro das Finanças e há bancos internacionais que estão disponíveis para ajudar Portugal, mas que querem contrapartidas. Essas contrapartidas são austeridade para o equilíbrio das contas e garantias de que determinados rendimentos serão cativados para pagar os juros desses empréstimos. E o que acontece é que o chefe do Governo, José Dias Ferreira, acha que isso põe em causa a soberania nacional e prefere ir para aquilo que toda a gente vai considerar uma bancarrota, ou seja, uma suspensão parcial, mas unilateral do pagamento da dívida.
Foi uma decisão para evitar o prolongamento da austeridade?
Foi sobretudo uma decisão política. A austeridade continuou e até aumentou depois, mas preferiu enfrentar-se a crise com a prata da casa, com os recursos do país e dispensando a ajuda externa. Enfrentou-se a crise através do isolamento, o país fechou-se mais. Teve consequências positivas para alguns. Por exemplo, para a indústria de cereais alentejana, que, contando com um sistema de protecção alfandegária que impedia a concorrência internacional, atravessou uma época boa. E que foi paga pelas populações pobres da cidade, que tinham o pão mais caro da Europa.
Quais os impactos nos mercados?
Houve uma suspensão dos pagamentos em Junho de 1892. E isso levou a incidentes diplomáticos. Começam logo negociações com comissões de credores a partir de 1893 e em 1902 conseguiram um acordo para uma reestruturação da dívida. Tentaram transformar uma bancarrota numa reestruturação da dívida. Mesmo assim, Portugal não voltou em grande escala aos mercados financeiros internacionais.
Porquê?
Do lado português, havia uma grande dificuldade que eram as colónias portuguesas. Havia o receio de que os credores internacionais exigissem como penhor os rendimentos das alfândegas coloniais e que isso pudesse ser entendido como sacrificar a soberania sobre os territórios africanos. E portanto os governos sucessivamente optaram por uma estratégia de contenção de despesas e de austeridade, que de certa maneira começa em 1890 e dura até praticamente ao 25 de Abril, com um breve intervalo durante a Primeira Guerra Mundial. Obviamente que continua a haver operações financeiras portuguesas no exterior, mas houve uma opção de manter o país muito cauteloso em recorrer aos mercados, na medida em que a prioridade foi a de conservar a soberania.
Para essas sucessivas opções pelo isolamento e pela austeridade interna ao longo das décadas, que influência teve a crise de 1890-92?
A bancarrota de 1892 e a luz negativa que lançou sobre o chamado "fontismo" - sobre um período em que a economia portuguesa se tinha aberto ao exterior, em que o Estado tinha optado por uma despesa pública que julgava produtiva - marcou a governação do país até ao 25 de Abril. Os governos republicanos a partir de 1910 o que trazem é muito mais austeridade. A ideia era a de que a monarquia caiu, porque não tinha sabido administrar as finanças do Estado e a referência era obviamente a crise de 1890-92. Na crise houve gente a sugerir que uma das formas de resolvê-la era vender as colónias e, por isso, começou a associar-se a ideia de um determinado tipo de comportamento financeiro ao risco que se poderia pôr à soberania do país e ao património colonial. E isso marcou os vários governos e os vários regimes ao longo de quase cem anos. Acabou-se com isso por isolar o país e cortá-lo do recurso a meios financeiros que poderiam ter sido usados para investimento. É um trauma que ficou por muito tempo.
Que pistas pode dar essa crise para o que irá agora a acontecer?
Creio que nos permite perceber as consequências de uma opção de bancarrota e isolamento. As vantagens, mas as grandes desvantagens também.
Fonte: Mafra hoje
Para os mais desatentos: Rui Ramos